terça-feira, 17 de setembro de 2013

Corpo Fechado (Leitura: A Professora de Piano / 2001)

O austríaco Michael Haneke se especializou no discurso psicológico da violência que habita os lugares mais obscuros da vertente humana. Em Violência Gratuita (1997) desceu aos porões de sua mente ao colocar em discussão a propensão à crueldade e á tortura, tão desprezadas no Homem, mas que tem espaço vivo quando estimuladas por algum fator externo. Aqui, em A Professora de Piano (La Pianiste, 2001, França/Áustria), Haneke quer simbolizar a degradante descida de uma mulher de meia idade aos limbos dos próprios desejos, tendo o sexo como pano de fundo (desculpe, cortina de frente) no processo de humilhação e afloramento de sua personagem-título.

Engana-se muito quem pensa que o diretor possa falhar com a sensibilidade em suas obras, pelo contrário, Haneke consegue discutir profundamente temas tabus sem que o choque seja o principal sentimento difundido durante a projeção. Não sei bem ao que isso se deve, talvez ao uso quase que hipnótico do silêncio, tão presente em seus filmes, ou a liquidez das conquistas humanas, que rapidamente se rendem à melancolia ou são surpreendidas por tragédias homéricas. De longe, mas correndo com força, surge a capacidade inabalável que o diretor tem de impressionar o espectador, atingindo diretamente nesses nossos lados secretos, absolutamente invioláveis.


O filme segue os passos de Érika Kohut (Isabelle Huppert, gélida e sensacional), professora de piano numa escola de certo renome. Érika é extremamente rígida com seus alunos e, de fato, não é uma rigidez que busca o melhor da outra pessoa, é quase que gratuita sua maneira nazista de lidar com os outros, principalmente no método de ensino, desprovido de elogios ou qualquer tipo de motivação. Parece que em algum momento aquela mulher se frustrou na sua caminhada de quase meio século, não conseguiu ser a musicista que sonhou e foi assolada pelo medo de sair e viver.

Em casa, Érika vive uma situação tão massacrante quanto sua vontade de se encontrar (é nisso que o filme se baseia: na liberdade de ser quem e o que for). A primeira cena do filme coloca Érika e a mãe (Annie Girardot), já idosa, num combate de solicitudes, onde a agressão física e moral é parte essencial daquela relação doentia entre mãe e filha. Infantil em quase todas as questões que não envolvem sua especialidade, a música, Érika se mantém refém da mãe, dorme na mesma cama que a genitora e não tem nenhum tipo de sinal para se abrir para uma vida privada.

Érika, então, encarna o espírito da mulher possessiva, sem limites e, de certa forma, corroída pela loucura. Quer sexo, quer conhecer-se sexualmente, mas não abre brecha pra isso, prefere frequentar clubes de pornografia e ser voyeur não assumida de transas de casais desconhecidos. Assim, a personagem explora toda sua política sexual, seu senso de prazer e tesão, caminhando para a tal liquidez em que seus desejos e verdades se afundarão.


O jogo começa a mudar para Érika quando ela conhece seu mais novo aluno, o jovem Walter, interpretado com bastante segurança pelo premiado Benoit Magimel. Logo de cara, o jovem se atrai pela mulher bem mais velha e, por tudo que o move, tenta conquistá-la, pelo menos, tê-la sexualmente num mergulho apaixonante, realmente guiado por paixão e desejo. A princípio, Érika o rejeita e, sobretudo, coloca Walter em seu devido lugar, mas aos poucos vai demonstrando toda sua fragilidade e curiosidade acerca de um relacionamento amoroso, sexual. Não, a personagem não irá se redimir. Após muito ignorá-lo, Erika começa a finalmente aparecer para Walter: obcecada, carente, violenta, dura, impossível de sentir dor ou alegria, movida por um instinto muito maior que seu bom senso, totalmente descaracterizada da realidade amorosa. A relação de professora-aluno dá lugar a uma relação inóspita, onde ninguém consegue sobreviver, agressor versus vítima (que de minuto em minuto vão se alternando entre Érika e Walter) se enfrentam sexualmente, verbalmente e idealisticamente até o fim do filme, que, na cena final, coloca Érika, em sufocante desespero emocional, frente a uma solução pouco provável: saciar uma dor com outra dor ainda mais intensa.


Huppert é uma atriz completa, já trabalhou com os mais incríveis diretores do mundo, entre eles Claude Chabrol, um dos principais responsáveis pela absorção técnica e corajosa que a atriz foi fazendo em cada papel que representou. Sua conduta robótica, encontrada no gelo, esconde do espectador aquilo que é extremamente visível no seu andar, na sua sensibilidade de se mover e encarar a câmera: o adversário natural.

Haneke faz um filme forte, impactante até o último minuto, improvável até que alguém diga o contrário. E ele mesmo diz.

quarta-feira, 8 de maio de 2013

Lateralidade (Crítica: Despedida em Las Vegas / 1995)



Não se sabe muito bem qual o momento de dar fim a alguma coisa. Simples. Em qualquer tipo de situação prazerosa o fim é sempre a pior parte. O término de um relacionamento de marido e de pai, o esquecimento de um ciclo coletivo e valorizado e os prazeres dos vícios mundanos são temas abordados pelo eficiente Despedida em Las Vegas (1995), filme do duvidoso diretor Mike Figgis.

A obra anda sobre cacos afiados, todos pertencentes a vida de John O"Brien, que se suicidou dois meses depois de lançar o livro em que se baseou o filme. Trata-se de uma projeção que sangra todos os percalços da vida desse homem alcoólatra, abandonado em suas convicções e sonhos. A fidelidade às folhas é emocionante, mesmo que melancólica, induz a um sentimento prioritário a qualquer ser humano: solidariedade. Nessa obra, então, somos levados a vida de dois sócios de uma vida miserável, necessitados do carinho do mundo, mas jogados cada vez mais em direção ao abismo da solidão e da morte.

Ben, personagem de Nicolas Cage, é o sujeito quebrado que vai levantar as pautas produzidas por O'Brien e, mais tarde, por Figgis. Um homem sem emprego, jogado pela mulher e esquecido pelo filho, e que, para somar como argumento, tem um vício terrível no álcool, atropelado pela sua condição. De forma mais simples, o indivíduo é um beberrão abandonado pelas pessoas mais importantes de sua vida. Não pense, assim, que Ben possa ser uma personagem superficial, pelo contrário, o roteiro é tão rico que a figura desse homem cresce assombrosamente, focando numa fragilidade plena no semblante de Cage, estourando um balão de melancolia que arrasta toda nossa atenção para o trabalho de atuação, de fato, a ser aplaudido.



Quando Ben decide se mudar para Las Vegas e lá beber até morrer, seu mundo vira de cabeça para baixo. Ele conhece Sera (Elizabeth Shue, exuberante), uma prostituta que se apaixona por Ben e compõe a atmosfera mortal que acompanha os personagens. Sera surge para tornar nítida a situação precária em que Ben se afunda cada dia um pouco mais, e será, até o fim, a mão amiga que levará o cara até a beira do precipício. Se existe tentativa de controlar a fúria de Nicolas Cage, Elizabeth Shue devolve tudo com flores mortas. Sua situação também não é forte o bastante para salvar Ben, mesmo que ela o entenda, seu único artifício é ser companhia de um homem rejeitado.

Nicolas Cage poderia ter uma carreira brilhante e invejável. Começou bem. Ainda muito novo, recebeu essa indicação ao Oscar, saiu vencedor e louvado do Kodak Theatre; era o próximo-homem do Cinema. Seu talento deixou o mundo espantado. A caracterização perfeita do sujeito alcoólatra que anda aos tropicões em busca de morte, e que seja, enfim, a vida; a transição da mente sóbria para a aura fantasiosa e de novo para a sobriedade, culminando na depressão; faces de um mergulho existencial do ator em busca da verdade. Extremamente detalhista, Cage realmente impressiona em cena. Da fragilidade, aparente na cena em que, no meio do sexo oral, pede que Sera pare e volte a conversar com ela, demonstrando profunda habilidade do ator, ao ter que migrar da glória ao prazer (estimulado por drogas), para a sutil percepção humana, até a infantilidade e agressividade habituais em pessoas alcoólatras.

Cru e vazio, Nicolas Cage levou muito a sério o perfil do homem inconsequente, brincalhão. Talvez, hoje, esteja perdido no mundo e nas ideias como Ben estava. Diferentemente, em Ben ainda havia uma consciência forte de seu estado, da sua falta de relevância.

sábado, 4 de maio de 2013

O Olho que tudo vê (Crítica: Perfume de Mulher / 1992)



Al Pacino já era um ator consagrado quando finalmente recebeu seu primeiro e único Oscar. Alguns de seus filmes se tornaram clássicos dentro da história do cinema e, claro, que muito disso vem da presença do ator. Quem não se lembra, por exemplo, da magnífica interpretação de Pacino em Um Dia de Cão (1975), do vigor de sua arte em Serpico (1973), ou da extrema entrega de Scarface (1983)? A verdade é que nessa incrível carreira tem filme bom que não acaba mais. E não é pretensão citá-los, é fato. A trilogia O Poderoso Chefão, Donnie Brasco, O Pagamento Final e mais uma série de outros títulos sugerem uma trajetória estelar, de muito reconhecimento e de continuidade inegável. Atualmente, Al Pacino resolveu brincar de fazer cinema. Brinca tanto a ponto da dúvida pairar sob sua figura. Quem se propõe a conhecer Al Pacino como ator dos anos 2000 terá poucas surpresas boas. Então, sugiro que volte no tempo e conheça o monstro que habita a alma desse ator.

Perfume de Mulher (1992) respira ares de Al Pacino. Se imaginar o filme sem o ator, fica difícil acreditar que o resultado pudesse ser o mesmo ou até mesmo levemente parecido. A criação de um personagem consumido por padrões e preconceitos, que ele mesmo lança e que também o atingem, deram a chance que Al Pacino buscou a vida toda: uma interpretação complexa e emocionante. Sim, mil personagens com as mesmas características passaram pela vida do ator, mas nenhum com a carga de vida e experiência contida em seu cerne como o tenente-coronel cego Frank Slade, o dual e notável personagem de Al Pacino.

A cegueira é o maior empecilho na vida de Frank, óbvio, e no feriado de Ação de Graças junto de uma espécie de cuidador, interpretado por Chris O'Donnell, resolve fazer uma viagem a Nova York, onde vai desfrutar dos maiores prazeres da vida, segundo ele, antes de cometer suicídio. Frank permanece recluso, morando nos fundos da casa de uma parente. As pessoas que se aproximam dele possuem sérias dificuldades em manter convivência, seja pela falta de empatia suplantada pela arrogância do militar ou até mesmo pelo estilo de vida extremamente reservada, contida em ambientes escuros, frios e carregados de sentimento de impotência.

A viagem até Nova York, o recheio desse bolo, implica na visualização real da personagem de Al Pacino. Aquele homem recluso e deprimido se revela, então, um sonhador. Aquele tango fascinante, em que o ator desfila todo seu charme e talento, é um exemplo digno de uma vida deixada para trás, de um sentimento pedindo olhos, bocas e poros abertos. Dá-se, então, a explosão na atuação de Pacino.

O'Donnell até tenta dividir o protagonismo do filme com o veterano, mas a tarefa se traduz numa impossibilidade catastrófica, pontuando um filme não tão bem-sucedido no seu final, lançando inúmeros clichês e sensações já vividas, já vistas. Mas Al Pacino é gênio. A magia de seu trabalho resplandece aos olhos de qualquer um, mesmo no seu olhar vazio e que nada vê, mas que encanta e supera milhões de finais felizes.

domingo, 21 de abril de 2013

A Vida em Telas (Crítica: Frida / 2002)

"Diego, houve dois grandes acidentes na minha vida: o bonde e você. Você sem dúvida foi o pior deles."



Se entrasse numa tela, a vida de Frida Kahlo não seria tão superlativa como se pode imaginar. Não é questão de ser nem de ter, é só uma constatação humana. A pintora mexicana viveu uma vida bem simples no que se pode traduzir nos dias de hoje, viveu como quis, mas apenas vivendo. Há quem pensa que o vendaval que foi Kahlo depende muito de uma vida insana, regada à droga e bebida ou, até mesmo, assombrada por amantes autoritários, mulheres com tendências apaixonantes e quadros de peso crucial para uma personalidade desconcertante. Frida foi uma mulher em cem mil. A prova de sua humanidade está na sua arte, na sua liberdade.

Frida (EUA, 2003), filme da diretora Julie Taymor, brilha exatamente no seu propósito libertário, contar aos “trancos e barrancos” a vida solar de uma mulher que enfrentou questões póstumas, momentos violentos e como transferiu a tragédia e a simplicidade para seu trabalho. Quem planta pecado não colherá Deus e Frida somente sonhou em com o viver. No papel da pintora está a também mexicana Salma Hayek, que também entrou como produtora da obra. Salma é indiscutível na sua representação de Kahlo, a atriz tem em seu cerne a admiração pela artista, é algo que acontece em poucos encontros, talvez o mais visível a curto passado seja a performance assombrosa de Marion Cotillard como Edith Piaf. O fato de existir um sentimento nacional entre uma artista viva e outra morta é palpável e quase olfativo nesses filmes biográficos. São performances catastróficas dentro do próprio caos. Talvez entenda assim o que é sentir a liberdade através da tela.



Lá pelas tantas de sua vida, Frida Kahlo protestou vivência, conquistou seus contrários e foi montando um sensacional roteiro de vida, isso torna o filme tão interessante, tornando desnecessária uma postura avaliativa. Seu princípio é conquistar sem ao menos te forçar a nada. Frida faz isso sozinha.

Com a dor crescendo a olhos nus, a perseguição da essência de Kahlo é, de fato, um senso e uma direção tomada por todos os profissionais do filme. Alguns pensam e veem uma mistificação em torno da figura da pintora, mas não, é só uma obra pronta pra declarar a relação social e humana da arte e do sofrimento, da liberdade e da lágrima. Aqui, Kahlo está onde deveria estar, sem estrelismos, apenas conquistando, causando reconhecimento.

O relacionamento com o artista Diego Rivera também é abordado dentro da perspectiva cinematográfica, somando mais humanidade as contradições (ainda assim, normais) de Frida Kahlo, entenda que seus problemas só estavam visíveis a outros olhos humanos.



Movimentista, louca, conquistadora, pataquada, egocêntrica, e muitas outras características foram aplicadas na personagem real. O que é verdade? Não sei. A percepção da mão hollywoodiana fica naquele singelíssimo bigode ostentado por Salma Hayek, quando, na realidade, todo mundo que conhece Kahlo sabe que ali existia um vasto bigode. Rivera (interpretado pelo ótimo Alfred Molina) também parece mais plausível na sua arte do que na representação do cinema, alguns o acusavam de terrores com Frida.

Fica parecendo, então, ou enfim, que uma vida continua em cores, em saltos e aos montes.