segunda-feira, 27 de junho de 2011

A Linha Tênue (Crítica: Á Deriva / 2009)



(Mathias)
Eu te odeio.
(Clarice) Um dia você já disse que me amava.



Entendi que deveria aproveitar o embalo e falar sobre mais uma obra do Cinema Brasileiro que me chamou muito a atenção. Eu, particularmente, gosto muito desse longa, mas de certa forma ele me deixa intrigado em alguns pontos: primeiro, porque dividiu a crítica do Festival de Cannes em 2009 e, segundo, pelas práticas mercadológicas existentes no filme. Mas nada contra isso, já sabemos que, no mínimo, 50% da arte cinematográfica visa lucros. Acho que À Deriva (2009, Brasil) perderia muito sem o charme e o talento do francês Vincent Cassell e da estadunidense Camilla Belle, e é isso que eu chamo de práticas mercadológicas, talvez o convite a esses atores só tenha sido feito pra que o filme fosse mais bem visto fora do Brasil.

Heitor Dhalia, diretor de À Deriva, dispensa nesse filme toda a sua aura sombria e seu tom histérico apresentado em suas outras obras: o filme Nina (2004) adaptado do livro Crime e Castigo de Dostoiévski e o excelente O Cheiro do Ralo (2006). Neste longa, Dhalia vai imprimir um pouco mais de humanidade nos seus trabalhos, abandonando de vez todo aquele clima de claustrofobia encontrado em suas obras anteriores. Aqui, ele dá espaço às cenas ensolaradas, a uma fotografia deslumbrante (de Ricardo Della Rosa) onde rochas escuras, mar azul e troncos de árvores envelhecidos criam um contraste único e servem de cenário a história.

A trama central de À Deriva já foi contada por muitos filmes, ou seja, o que esse filme tem de melhor não é a história, mas sim, as interpretações, a fotografia e a trilha sonora que dão toda a sutileza necessária ao trabalho de Dhalia. Numa mistura de atores globais, estrangeiros e novatos, Dhalia conseguiu criar um elenco que se entrosou muito bem, independente das barreiras da língua, de clima ou de qualquer outra coisa.



Filipa (Laura Neiva, descoberta no site de relacionamento Orkut e se parece muito com a Fernanda Lima mais novinha) é o centro da trama, é através dela que a história se desenvolve e o crescimento dela como ser humano é o que nos interessa. O filme conta a história dessa menina, que com 15 anos, vai passar as férias com a família em Búzios. Filipa tem uma relação quase que incestuosa com o pai Mathias (interpretado pelo francês Vincent Cassell, o mesmo carrasco de Natalie Portman em Cisne Negro). O pai está na cidade para tentar escrever o novo livro, enquanto a mãe (Debora Bloch, sublime) vai se entregando ao alcoolismo. Porém, o que Filipa não sabe é que a aparente família feliz está definhando, a viagem não passa de um pressuposto para tentar reacender o amor entre seus pais. No meio de toda essa guerra que começa a se tornar clara entre o pai e a mãe, Filipa começa a se ver descrente de seu papel no mundo. E o filme é isso: a passagem da infância para a vida adulta da menina. Felipa é a linha tênue que separa infância, adolescência e mulher.

A gente se dá conta dessa mudança na personagem, quando ela descobre que o pai tem uma amante (a apagada Camilla Belle), a partir daí, Filipa começa a sentir desejos sexuais, até então reprimidos pela infância, mas com o mundo jogado sobre suas costas, Filipa tem no seu despertar sexual a sua válvula de escape. A mãe é um poço de amargura, como uma arma engatilhada pronta para disparar contra o marido a qualquer momento, o pai, tenta suprir as carências dos filhos, mas nem imagina o quão longe ele está disso. E no fim, a cabeça que acha que sabe tudo, mas ainda não tem (mas tem que ter) estômago pra digerir dramas familiares tão complexos, é a cabeça de Filipa.



Heitor Dhalia acertou em cheio ao colocar a estreante Laura Neiva no papel da protagonista do longa, de uma beleza juvenil e ao mesmo tempo adulta, a menina dá a personagem tem toda a tensão e complexidade que exigiu a trama. O diretor pesa nos diálogos curtos, porém cortantes, pra dar espaço à trilha sonora de Antonio Pinto (o mesmo de Central do Brasil). Os momentos de silêncio são poucos, já que quando menos se espera a trilha sonora invade a tela e encaixa perfeitamente com tudo: com a tensão e a excitação, com a melancolia e com a fuga. O foco da câmera é sempre Filipa, o filme é sobre a visão de Filipa do seu mundo desmoronando.

Chama a atenção também, a quantidade de vezes que a história nos chama para um final trágico, seja no acidente de carro, no aparecimento de uma arma de fogo ou no desaparecimento de Filipa, após consumar sua primeira experiência sexual, a trilha sonora instiga nós, espectadores, durante todo o tempo, o filme é realmente um drama, mas que causa uma tensão inexplicável em nós.



A trama não surpreende, não é uma reviravolta cheia de percalços, Dhalia se mantém comedido durante todo o trabalho, o que impressiona mesmo é a delicadeza, a qualidade da música, das interpretações e da fotografia. Os críticos de cinema, em sua maioria, não engoliram o filme, alguns acham a história clichê demais (e realmente é, às vezes lembra as histórias já tão bem exploradas por Truffaut), outros acham o filme lento demais, outros a trilha sonora extremamente repetitiva. Porém, não podemos negar que o diretor teve uma mão muito boa ao conduzir seus atores, na impressão de sensibilidade à obra e, sobretudo, no resultado final que é bastante reflexivo, mas nunca inovador. Quanto a trilha sonora, linearidade da narrativa, velocidade das ações: isso tudo depende do gosto do espectador, existem ótimos filmes em todos os sentidos.

Por fim
Filipa é uma grande infinidade de nós mesmos espalhados por aí, é uma menina que teve que se bancar emocionalmente cedo, devido à separação dos pais, e que cresceu com imposição das circunstâncias. A primeira e a última cena do filme são de uma delicadeza e de uma mensagem que causam arrepio. Nas duas cenas Filipa e o pai Mathias estão boiando no mar: na primeira, estão ali um homem e uma menina; na segunda, um homem e uma mulher. Boiado, à deriva.

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