quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Sob os Muros do meu País (Crítica: Terra Estrangeira / 1996)

Até lá, vou buscando me encontrar.



Até encontrar um roteiro, até encaixar uma temática, até definir seus atores, até passar a realidade nua e crua para meus olhos.
Não vivi (no sentido mais abrangente da palavra) em nenhum dos dois grandes períodos de emigração que se instalaram no Brasil: o primeiro, em consequência da Ditadura Militar (1964 – 1985), período que levou milhares de brasileiros a procurar abrigo em outros países, pois estes, chamados de subversivos, estavam sendo perseguidos e mortos dentro de seu próprio país; e o segundo, que se deu por motivos totalmente diferentes do primeiro. No início dos anos 1990, Fernando Collor de Mello, agindo sob as intenções de seu famoso Plano Collor, numa tentativa absurda de “salvar” o Brasil das ruínas, ordenou o confisco das reservas particulares de todos os brasileiros. O Brasil se via numa das piores crises econômicas de sua história. E aqui se encontra a diferença dos dois grandes períodos de emigração que assolaram o Brasil, um por motivos políticos e outro por motivos econômicos. Pela primeira vez um grande número de brasileiros deixa o país na esperança de ter uma vida melhor, de conseguir um bom emprego e, até mesmo, de enriquecer além das fronteiras de sua terra natal.

Collor, na época, extinguiu todas as fundações dedicadas ao Cinema, o próprio Ministério da Cultura e todas as suas leis de incentivo à produção cultural.

Volta ou outra, ouvimos falar da retomada do Cinema Nacional. A retomada vem disso. Dois grandes períodos tão obscuros da nossa história que praticamente impossibilitavam fazer cinema dentro do Brasil. A sensação de que o Brasil era um barco à deriva era quase que compartilhada por toda a população.

Walter Salles e Daniela Thomas escolheram o polêmico período do governo Collor para contar uma grande história. Em Terra Estrangeira (Brasil e Portugal, 1996), o sentimento do exílio vai ser o grande centro da história. Temática que, particularmente, acho muito difícil de explorar. Acredito que o sentimento do exílio é único e só quem viveu isso sabe como é. Não é contar a história de pessoas que decidiram morar em outro país e, sim, de pessoas que foram obrigadas, por diversas razões, a abdicar de tudo: família, língua e sonhos.



Walter Salles optou por dirigir o filme todo em preto e branco, dessa forma, mostraria com mais realidade um tema tão difícil de capturar. Acredito que a película pode ser considerada mais um road-movie de Salles, como considerei Central do Brasil. O filme foca em estradas, em caminhos, tanto objetivamente quanto subjetivamente.

Paco (Fernando Alves Pinto) mora em São Paulo com a mãe (Laura Cardoso). O jovem é estudante universitário, mas que sonha em ser ator. A mãe do rapaz tem um grande sonho: voltar para a terra de origem, San Sebastian, no norte da Espanha. Paralelamente a essa história, temos o casal Miguel (Alexandre Borges) e Alex (Fernanda Torres), dois brasileiros que partiram para Portugal na esperança de construir uma vida melhor. Os dois chegaram lá como contrabandistas, porém, Alex só usou desse artifício para entrar no país, já Miguel ainda mantém as práticas de contrabando e é viciado em heroína.
Essa é a apresentação que nos é feita. Agora as histórias vão se desenrolar, morrer, se encontrar e se perder.

A mãe de Paco morre em frente a televisão após saber que todo o seu dinheiro, o qual ela usaria para realizar o grande sonho, havia sido confiscado pelo governo brasileiro. Paco se vê sem rumo com a morte da mãe. Agora, mais do que nunca, o jovem se vê obrigado a ir a San Sebastian, chegar à cidade, sentar e olhar por alguém: a mãe. Quando está num bar, bebendo para digerir o acontecido, conhece Igor (Luís Mello), um misterioso colecionador de antiguidades que aparentemente sem buscar recompensas resolve ajudar Paco. Paco não tem dinheiro, não tem condições de chegar à Espanha. Igor, então, propõe que Paco leve uma mercadoria até Lisboa e que lá ele receberia um dinheiro para chegar até San Sebastian. O que Paco não sabe é que Igor é um perigoso contrabandista e que foi ele também o responsável por mandar Miguel e Alex para Portugal. Chegando a Portugal e após uma série de acontecimentos que vão desde a morte de Miguel até o desaparecimento da mercadoria que o jovem levara a Portugal, Paco conhece Alex e se apaixona por ela. Os dois vão viver um relacionamento conturbado pela perseguição de Igor, pela indefinição dos fatos e pelo amor fervente que nasce entre eles.



Walter Salles usou durante todo o filme câmeras muito inteligentes e precisas, de agilidade inquestionável e trilha sonora que emite grande suspense na maior parte da apresentação da obra. Algumas metáforas também foram usadas, como o barco à deriva que representaria o momento pelo qual o Brasil se arrastava; a jogada de câmera que deixou a personagem de Fernanda Torres em cima de uma cruz e o jovem Paco a contempla-lá de baixo, quando ele se dá conta que encontrou a primeira pessoa que pode confiar.

A caracterização das personagens ao que nós julgamos ser o sentimento do exílio parece ser fascinante. É possível ver o vazio que se estende em todas elas, a nostalgia em relação à terra natal e, principalmente, a falta de raiz com qualquer tipo de relacionamento: seja no relacionamento com o próximo, mas, indiscutivelmente, no relacionamento cidadão/pátria, não existe sentimento de ser de algum lugar, não existem raízes. A desesperança constitui todo o sentimento que as personagens carregam consigo.

Terra Estrangeira é quase uma aula de Antropologia. Vemos a situação do Brasil aos olhos de outros povos, alguns bem menos desenvolvidos que o próprio Brasil, como é o caso dos angolanos que enxergam apenas a violência como característica do povo brasileiro. A invalidez de um passaporte brasileiro também chama a atenção, ele simplesmente tem um valor abaixo do normal por ser brasileiro. E tudo isso acontece dentro de um país considerado a escória da Europa. Portugal é periferia. É símbolo do que há de pior no continente europeu. O ponto que Terra Estrangeira quer tocar são as fronteiras. Quem delimita as fronteiras? Porque para alguns ela se torna mortal, como no caso de Miguel? A gente sempre tentando ultrapassar as fronteiras e entrando num lugar onde nos sentiremos estrangeiros, não pela barreira da língua ou da cultura, mas pelo sentimento de não nos sentirmos de lugar algum.



Todas as atuações do filme são de deixar o queixo caído. Fernanda Torres mostra, mais uma vez, que faz cinema como poucas atrizes brasileiras. Não existe vaidade que limite a total entrega da atriz para a personagem. Laura Cardoso faz uma ponta brilhante, talvez, seja dela, a única personagem que mantém laços com a esperança. O jovem e pouco conhecido Fernando Alves Pinto também dá conta do recado com perfeição.

A belíssima fotografia do filme também dá asas a nossa imaginação. Sempre cortada por ambientes crus e revoltos, a fotografia tem no preto e branco um auxílio magistral. A cena final em que Alex rompe com as barreiras entre Espanha e Portugal, cantando Vapor Barato em cima da voz de Gal Costa, tendo sob seu colo o amado ferido com um tiro no peito é de uma sensibilidade e beleza sufocadoras. A partir daqui não sabemos se Paco conseguirá olhar San Sebastian pela mãe, se a polícia capturará esses dois estrangeiros ou se tudo dará certo e, assim, Paco e Alex encontrarão a tão sonhada liberdade.

Na obra, o amor é a única opção de liberdade às duas personagens. Só o amor é capaz de trazer esperança de volta. E só a partir dele eu consegui encontrar a única maneira de definir o exílio.
O vazio? Esse fica. Como aquela pedra que a gente coloca no bolso e vez ou outra nos lembra do peso que tanto incomoda.

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Cinzas, relógio e imaginação (Crítica: Desventuras em Série / 2004)

A promessa dos céus é de que toda tempestade passa.
Cai
Diante de um céu cinza, vejo cair o mundo. Mundo este, que pela primeira vez, construímos sozinhos. Por méritos que até os deuses desconhecem. Mas, que sim, construímos.
Essa tempestade não cai, não passa, insiste em permanecer sobre ou dentro das nossas cabeças.
Não imploramos por ajuda, não precisamos dela. Só contamos com o passo rápido que o relógio também insiste em não aderir.
Tenho saudade da minha mãe. Tenho saudade do meu pai. Tenho saudade de mim.




Talvez essa seja a “crítica” mais breve que eu já escrevi. Não estou aqui para falar de travellings, fotografia, direção de arte ou atuação. Isso também não é por falta de inspiração. Descobri que posso falar através do cinema. Descobri que esse é realmente meu único e verdadeiro caminho. Descobri (ou pelo menos passei a aceitar) que estou no caminho errado...

Como é possível uma indústria, cinza como costuma ser, me causar tanta comoção? E aqui, já estou eu com os olhos ardendo na difícil arte de segurar lágrimas. ARTE. Acho que essa é a palavra chave para tudo. Viver é uma arte, mesmo que você nunca tenha entrado em contato com nenhum tipo de expressão artística, a sua história rende um século de arte. Meu caminho não é esse. É hora de virar a mesa. Como? Não tenho dinheiro, não tenho opinião própria e tenho muita preguiça. A única coisa que sei fazer mais ou menos bem é isso: “criticar” o trabalho dos outros. Que arrogância a minha. Como se alguém estivesse se importando com meus 5 ou 6 parágrafos de pura paixão e fascinação. Como se eu acreditasse que um dia eu vou ser o que eu nunca serei. Que preguiça.

Mais aí me surge um filme que não me canso de ver e que, ainda, condiz exatamente com o que eu busco no próximo: amor, imaginação e união. Irrita-me profundamente quando surge um louco (ou o louco sou eu) dizendo que Desventuras em Série (Lemony Snicket’s: A series of unfortunate events. EUA, 2004) é um Harry Potter mediano. Se não fosse o grau de simbolismo que Harry Potter tomou na minha vida, diria que a obra de Daniel Handler é muito mais completa que os livros da inglesa J. K. Rowling.
E ainda não consegui falar nada com nada.



Desventuras em Série é uma fábula infantil, dedicada ao público infanto-juvenil, porém, vejo na obra do diretor Brad Silberling muito mais do que uma fábula: vejo uma lição para adultos, e vejo um deleite para crianças que já cresceram. Eu. Encaixo-me perfeitamente no público que ama essa obra: sou ingênuo, fascinado e tenho um coração que não é meu, é totalmente de quem corre ao meu lado.

A história de Desventuras em Série não é bonita, não é alegre. No começo do longa, o narrador (Jude Law) alerta o espectador: “Se você quer assistir um filme sobre elfos felizes, você está no lugar errado. Ainda há tempo para desistir e assistir um filme com pássaros cantando e elfos pulando num vale verde”. Basicamente, o filme trata com muito carinho (na medida do possível) a história dos três irmãos Baudelaire. Violet (Emily Browning, um doce), Klaus (Liam Aikeen) e Sunny (Kara e Shelby Hoffman) são os Baudelaire. Logo no início do filme seus pais são mortos num incêndio dentro da própria casa. Assim, três crianças ficam órfãs e sob a mercê do vilão da história. Conde Olaf (Jim Carey) é o parente mais próximo das crianças: um tio insano, excêntrico, ambicioso e aspirante a ator. Olaf só está interessado na herança das crianças, herança esta que só será liberada quando Violet fizer 18 anos. O Conde, então, decidi que a solução mais plausível é matá-las. Nas mãos de Olaf, essas crianças vão sofrer as maiores barbaridades, vão ser humilhadas e tratadas como estrume. Agora vem a especificidade de cada uma dessas crianças. Violet tem um incrível dom de inventar coisas com os mais diversos e estranhos objetos, basta amarrar o cabelo com uma fita e ela se vê produzindo as maiores genialidades; Klaus consegue lembrar de tudo que ele já leu um dia, cada palavra, e somos informados de que ele já leu mais de 1000 livros sobre os mais variados temas; Sunny, um bebê, só sabe morder. Só morder.



Com esses “dons” os irmãos Baudelaire vão fugindo, tentando escapar da ganância do tutor, vão sendo mandados para casas de parentes cada vez mais distantes. O tio fascinado por cobras (Billy Connolly) e a tia histérica, apaixonada por gramática e que morre de medo de corretores de imóveis (Meryl Streep). Porém, Conde Olaf ainda está atrás das crianças, ele mata o tio, mata a tia, sempre deixando as crianças sem opções a não ser voltar a viver com ele e, assim, serem mortas. Mortal, um para o outro.

E essas são as crianças Baudelaire. A história gótica e com estilo macabro se torna linda no âmbito da união desses três irmãos que se veem sozinhos e sem opção a todo o momento. A mais velha, na pureza de seus 14 anos, é a líder dessa união: está com a irmã no colo quase que o filme inteiro, simboliza a esperança de uma vida melhor, de um momento de paz entre os três, onde ela poderá ser o que ela sempre foi.



Desculpem-me mesmo não desvendar mais nada além disso: os livros, o roteiro, a esplendorosa fotografia a la Tim Burton, as três crianças geniais, a maravilhosa direção de arte. Hoje é só isso que eu tenho para falar. A história de crescimento dessas três crianças hoje me bastou.

No silêncio da solidão coletiva, essas crianças procuraram um abrigo, um lar. Um lugar onde elas pudessem só brincar de tentar ser adulto, mas, ainda assim, permanecer e preservar sua criancice. Mas, elas tiveram que crescer e lidar com situações que nem nós, adultos, somos capazes de lidar: a falta dos pais e a própria falta de identidade. E elas têm chances de vencer, graças à imaginação, a união e ao amor. É voltar para tentar reparar, salvar tudo o que foi.




E assim, um rastro de sol se infiltrou na pesada camada cinza que o céu insistia em preservar.
Já é um começo.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

De tempos em tempos, o perdão (Crítica: Magnólia / 1999)

“Mas se recusares a deixá-lo ir, eis que ferirei com rãs todos os teus termos”



Quantos filmes você já assistiu e pensou: Que m* é essa?

Poucas vezes tive o prazer de me perguntar isso, porém, a obra sempre se mostrou muito mais do que eu esperava: um grande feito. Existem filmes que não aspiram interpretações pela metade, mas, sim, interpretações que entrem num senso comum ou até mesmo que sejam de origem mais pessoal ainda, mas, sempre interpretações conclusivas.

O cineasta norte-americano Paul Thomas Anderson, hoje simplesmente como P. T. Anderson, é conhecido por trabalhar dessa forma: seus roteiros são sempre recheados das mais diversas metáforas, de diferentes tramas e subtramas, e, ainda, possui um estilo de filmagem muito pessoal, o que dificulta o espectador na hora de interpretar qualquer uma de suas obras.

Em Magnólia (Magnolia, 1999. EUA), Anderson imprime toda sua versatilidade e genialidade na construção do roteiro, na direção dos atores e na própria direção geral do longa. O filme, que foi eleito como sendo um dos melhores dos anos 1990, é uma aula sobre visão, ousadia (desde os travellings até as metáforas) e, principalmente, de complexidade cinematográfica.



Não vou me permitir mais delongas, já que o assunto promete render páginas e páginas de especulações. Por isso, tentarei ser o mais breve e justo possível.

Paul Thomas Anderson já tinha provado sua genialidade em várias subdivisões da arte cinematográfica com Boogie Nights (1997), filme que aborda o nascimento da indústria pornográfica nos Estados Unidos. Consequentemente, precisava agora provar que Boogie Nights não havia sido sorte de principiante e que, sim, ele era um NOME do Cinema contemporâneo. Nesse instante nasce a ideia de Magnólia. P. T. Anderson manteve boa parte do elenco de Boogie e começou a rodar o que foi sua obra prima até o nascimento de Sangue Negro (2007). Isso na opinião dos grandes críticos mundiais, opinião a qual compartilho.

Magnólia começa tenso e confuso. Ao invés de apresentar seus personagens, Anderson opta por mostrar uma série de acontecimentos na vida de pessoas que não farão diferença nenhuma no caminhar da história que logo mais começará a ser contada. Um homem que tenta o suicídio se jogando de um prédio, mas que no exato momento em que passa pela janela do seu apartamento é atingido por um projétil de arma de fogo, disparado pela própria mãe, que discutia com o marido. Anderson fez esse take com a intenção de mostrar como nós estamos à mercê das coincidências da vida, do acaso. E que sob esse (o acaso) nós não temos controle nenhum.



Então, resta a Anderson começar a apresentar seus personagens, que são muitos, de mundos diferentes e que terão, por algum motivo, suas histórias interligadas. Magnólia vai acompanhar um único dia na vida desses personagens. Assim, nos é apresentado Earl (Jason Robards) um milionário produtor televisivo que está à beira da morte, em função de um câncer. Earl é casado com Linda (Julianne Moore), uma mulher bem mais jovem que o marido e que se casou por interesse, mas que vê na doença deste o florescimento do amor. Acamado, Earl conta com a ajuda do enfermeiro Phil (Philip Seymour Hoffman, aqui o grande ator se contém num papel tímido). É Phil quem vai lutar para que Earl reveja o filho que ele abandonou há muitos anos atrás. O filho é Frank Mackey (Tom Cruise, na melhor atuação de sua carreira), uma espécie de guru sexual, que empreende uma jornada machista. Do outro lado temos o policial Jim (John C. Reilly), talvez seja esse o personagem mais ingênuo da trama, é nele que Claudia (Melora Walters, também sensacional) encontra uma nova chance de estruturar sua vida, sair do vício das drogas e, finalmente, se livrar do seu trauma. Claudia é filha de Jimmy Gator, apresentador de um programa de televisão (produzido por Earl) que mostra uma competição intelectual entre crianças e adultos. Jimmy tem uma relação conturbadíssima com Claudia. Stanley (Jeremy Blackman) é um garoto prodígio que é usado pelo pai para obter dinheiro e fama através do programa de Gator. Para fechar, temos Donnie Smith, é um quarentão fracassado, conhecido por ser, quando criança, um recordista do programa de Gator. Anderson montou o cenário e agora começa a bela confusão.

É incrível como Anderson consegue trabalhar com tantos personagens e mesmo assim imprimir complexidade e profundidade nos tais personagens. Todos eles são vítimas de um passado obscuro, pedante e de arrependimentos. É um ode ao perdão. Todos buscam redenção, de uma forma ou de outra. A personagem de Julianne Morre talvez seja a mais difusa da história, porém, tem sua importância: foi a partir dela que Anderson construiu as outras figuras. Também é curioso como as histórias se repetem: a indefinição na relação entre pais e filhos, a destruição de uma vida inocente pela ambição de outro, a doença como fator de reaproximação e o acaso como ponto de solução.



Tecnicamente, Anderson dá um show. Desde os closes e os cortes repentinos, um mesmo personagem não tem mais que 5 minutos para mostrar sua história, os cortes aparecem em momentos de grande tensão e em momentos de mera contemplação. O diretor também usa travellings geniais, capazes de deixar qualquer aspirante a cineasta com água nos olhos, como é a cena em que o garoto Stanley corre pelos corredores do estúdio do programa de Jimmy Gator.

Agora vem, o que talvez seja o maior tesouro da obra de Anderson, as intermináveis metáforas. Precisei assistir novamente o filme para ver o constante aparecimento do número 82, na primeira vez passou completamente despercebido. O diretor, ainda, colocou numa das cenas de gravação do programa de Gator, um figurante que ergue um cartaz no meio da plateia. Nele está escrito: Êxodo 8:2. Uma menção bíblica que diz o seguinte: “Mas se recusares a deixá-lo ir, eis que ferirei com rãs todos os teus termos”. E é aqui que inicio a discussão sobre a cena mais polêmica do filme: a chuva de sapos. Qual a finalidade dessa chuva? Castigo? Ponto de partida?



Coincidentemente, a estranha chuva tem início quando o personagem de Tom Cruise, já anestesiado pelo encontro com o pai, pede que este não se vá. Nesse momento o primeiro sapo cai do céu, dando passagem para mais um milhão de sapos que vão cair ao longo da cena. ISSO PODE ACONTECER. É o que diz o menino Stanley diante da chuva. Novamente o acaso ou finalmente a intervenção dos céus. Lembre-se do menino que se intitulava profeta e que aparece em alguns momentos do filme: para denunciar um criminoso para Jim, para salvar a depressiva Linda, para resgatar a arma de Jim... arma essa que cai do céu junto com os sapos. Quem era aquele menino, afinal? Qual era o papel daquela criança. Notem a complexidade da obra de Paul Thomas Anderson.

Outro momento bastante metafórico se dá no instante em que todos os personagens cantam a mesma música. É como se todos estivessem sentindo o mesmo, se unindo no sofrimento e fossem parar no mesmo ponto. Numa hora todos iam se encontrar. E as histórias se encontram.

O nome do filme também rende outra metáfora, um pouco mais complexa. Acredita-se que a magnólia seja a flor mais primitiva que existe no mundo. Daí as atitudes, buscas e receios dos personagens. Todos somos frutos de alguma coisa, somos regidos por alguma coisa e nada mais depende só de nós. É o ser humano em seu estágio mais dependente possível.

O destaque de atuação vai para Tom Cruise e a novata Melona Walters, os outros atores se mantém razoáveis, mas não comprometem o filme em momento nenhum. Tom Cruise é destaque absoluto, conhecido por ser um ator limitado, aqui o Sr. Cruise entrega a melhor atuação de sua carreira: desde o começo como um libertino machista até o final onde entrega a melhor cena da carreira. O encontro com o pai é arrepiante, e só vemos em Cruise uma criança pedindo atenção. Como Stanley pede para o pai (as histórias se repetem). A intensidade com que Cruise constrói o personagem é digna de um Oscar (o ator foi reconhecido com uma indicação na categoria de Melhor Ator Coadjuvante). Não conhecia Melona Walters até ver Magnólia, entendi seu sofrimento e sofri junto como um fiel escudeiro. Outro show a parte. São os adultos voltando a ser crianças: com ela isso ocorre na cena do jantar com o policial Jim, notem a ansiedade da personagem frente a possibilidade de se achar.



Estou terminando esse texto crente que estou deixando três milhões de coisas para traz. Isso incomoda. Queria poder falar de cada metáfora que aparece na obra e que não consegui enxergar nas duas vezes que assisti. Paul Thomas Anderson proporciona a cada um de nós uma experiência arrebatadora. Um caminho surreal que tem como ponto de partida o arrependimento e ponto de chegada o perdão, embora para alguns esse fim nunca chegue. Permitindo-lhes, então, o silêncio e o fardo.

terça-feira, 9 de agosto de 2011

A Textura das Nuvens (Crítica: O Fabuloso Destino de Amélie Poulain / 2001)

Imagine uma vida feita de açúcar.

Imagine mãos feitas de açúcar.

Sinta o cheiro doce, não do açúcar.

Escolha vidas e com suas mãos, transbordando de açúcar, toque em todas elas.

Agora voe...



“Tem coisas que a vida não muda, tem coisas que a gente quer mudar”

Fábulas. Um mundo construído por um diretor totalmente alheio a essa espécie de obra. O diretor francês Jean-Pierre Jeunet estava acostumado com obras mais sombrias como Delicatessen (1991) e Alien – A Ressurreição (1997) até o dia em que uma nova lâmpada acendeu em sua mente e ele escreveu O Fabuloso Destino de Amélie Poulain (Le Fabuleux Destin d’Amélie Poulain. França, 2001).
Fabuloso mesmo. Surpreendente, doce, único, singelo e, ainda, poderia ficar aqui citando madrugada afora mais um milhão de bons adjetivos para definir essa obra.

Sim, é Cinema Francês. Algumas pessoas têm certo receio com essa terra que já lançou, pelo menos no mundo cinematográfico, uma série de gênios, como Truffaut, Resnais e Godard. Cinema Francês é parado? É. Cinema Francês é cansativo? Pode ser. Mas, como é possível ver em qualquer tipo de Cinema Nacional, tudo depende do que procuramos. As características do Cinema Francês são todas tiradas do mundo das artes (onde a maior parte dos filmes do país foca) e retratá-las sem intensidade, sem reflexão e com mão leve soa muito contraditório e infiel. Daí pensei: Antes de partir para Truffaut, Godard, Catherine Deneuve, Jeanne Moreau, porque não o despretensioso Amélie Poulain? Para resumir, trago a obra de Jeunet para desmistificar o Cinema Francês na mente de algum iniciante no mundo do Cinema ou até num cinéfilo com profunda queda pelo Cinema Ianque. Aqui a arte francesa consegue ser leve, bobinha (tente achar o melhor sentido para essa palavra), emocionante, carinhosa. É uma mão, transbordando de açúcar, dentro do nosso coração.



Escrito e dirigido por Jeunet, Amélie Poulain chegou ao circuito internacional de Cinema do ano 2001 como o patinho feio (alguns definiam o filme de forma crua: desinteressante), no mesmo ano conquistou crítica, Goya, César, público (francês e do resto do mundo), tendo como fim da caminhada no ano, a rendição do Oscar à obra.

Até hoje Amélie conquista uma quantidade incalculável de pessoas, mesmo no Brasil, tamanha é a viagem proporcionada pelo filme. E isso é sublime, faz com que acreditemos na gente como humanos, como protetores, como seres capazes.

Amélie Poulain (interpretada por Audrey Tautou, força física impressionante) cresceu em meio as paranoias dos pais. Examinada pelo próprio pai, ainda criança, Amélie é erroneamente diagnosticada como uma menina com problemas cardíacos muito sérios. Por isso, Amélie foi isenta de estudar em escolas como qualquer outra criança de sua idade, cresceu sozinha, sem amigos (sua melhor amiga trata-se de uma câmera fotográfica). E nesse colapso neurótico, Amelie cresceu em completo estado de voyeurismo. Sabia da vida e das pessoas somente o que ela pôde observar.



Em função de uma infância reprimida, Amélie construiu um castelo em sua mente e ali abrigou os mais diversos sonhos e fantasias. Imaginação fértil é pouco. É uma roseira que nunca morre, dali germinou tudo o que Amélie pensa sobre o mundo e tudo o que ela pode e vai fazer por ele.

Já adulta Amélie muda-se para Montmatre e vai trabalhar como garçonete. Um dia, no seu apartamento, a jovem parisiense encontra atrás de um azulejo solto, numa caixinha, as memórias da infância de um garoto que supostamente teria vivido ali, naquele mesmo apartamento, nos anos de 1950. Após encontrar o senhor (que já aparentava ter mais de 50 anos) e ao ver a reação dele ao receber aquele tesouro, Amélie encontra uma nova razão de viver: ajudar todas as pessoas que passam pelo seu caminho. Amélie pode ser encarada como uma heroína, daquelas mais simples possíveis, sem grandes poderes e tendo como única arma a sua gloriosa imaginação.

Das formas mais inusitadas, a jovem vai ajudando seus iguais. Um casal improvável, mas que sua junção traria benefícios para uma infinidade de pessoas; um colecionador de fotos 3x4 (o ótimo Mathieu Kassovitz); um verdureiro rechaçado pelo seu patrão; uma senhora abandonada pelo marido. E nem tudo caminha com a justiça, na verdade, quase nada caminha com a verdade, mas, com tudo que Amélie julga ser certo. Da ajuda ao colecionador de fotos 3x4 surge uma paixão singela e surpreendente, que rende os melhores momentos do filme: mistura-se comédia, romance, aventura e suspense.



Jeunet acertou em quase tudo nessa obra: na escolha dos atores; na direção de arte, que é fabulosa, desde a explosão de cores até o figurino, hora, inusitado; nos efeitos de câmera, esta que nunca deixa de ser ágil e reveladora; na construção de um roteiro inovador, gótico e surreal, formando essa verdadeira fábula; na apresentação física e psicológica das personagens e no narrador, que soa ser o grande amigo de Amélie. Como se a câmera ganhasse voz e resolvesse contar a vida da senhorita Poulain.

O que merece cem capítulos à parte é a trilha sonora de Yan Tiersen. As composições de Tiersen não permanecem apenas na cena. Tem momentos que a música para de tocar (raros, pois o filme é quase que inteiramente pontuado pela Valse d’Amelie), mas, que a gente de tão imerso na história e na doçura da trilha, continuamos com todos os toques das canções na cabeça. É uma trilha que sobrevive após a projeção da película.



Amélie Poulain é esse lado mais leve, menos crítico, menos preocupado do Cinema Francês. Humano na sua veia mais profunda, fantasioso na sua primeira aparição. Depois de assistir é como se tivéssemos finalmente descoberto a sensação de deitar numa nuvem.

“Pudera eu sentir, sorrir, e ver o sorriso na face de todos que espero que sintam”.

Desculpem-me pela cópia, meus caros.