quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Sob os Muros do meu País (Crítica: Terra Estrangeira / 1996)

Até lá, vou buscando me encontrar.



Até encontrar um roteiro, até encaixar uma temática, até definir seus atores, até passar a realidade nua e crua para meus olhos.
Não vivi (no sentido mais abrangente da palavra) em nenhum dos dois grandes períodos de emigração que se instalaram no Brasil: o primeiro, em consequência da Ditadura Militar (1964 – 1985), período que levou milhares de brasileiros a procurar abrigo em outros países, pois estes, chamados de subversivos, estavam sendo perseguidos e mortos dentro de seu próprio país; e o segundo, que se deu por motivos totalmente diferentes do primeiro. No início dos anos 1990, Fernando Collor de Mello, agindo sob as intenções de seu famoso Plano Collor, numa tentativa absurda de “salvar” o Brasil das ruínas, ordenou o confisco das reservas particulares de todos os brasileiros. O Brasil se via numa das piores crises econômicas de sua história. E aqui se encontra a diferença dos dois grandes períodos de emigração que assolaram o Brasil, um por motivos políticos e outro por motivos econômicos. Pela primeira vez um grande número de brasileiros deixa o país na esperança de ter uma vida melhor, de conseguir um bom emprego e, até mesmo, de enriquecer além das fronteiras de sua terra natal.

Collor, na época, extinguiu todas as fundações dedicadas ao Cinema, o próprio Ministério da Cultura e todas as suas leis de incentivo à produção cultural.

Volta ou outra, ouvimos falar da retomada do Cinema Nacional. A retomada vem disso. Dois grandes períodos tão obscuros da nossa história que praticamente impossibilitavam fazer cinema dentro do Brasil. A sensação de que o Brasil era um barco à deriva era quase que compartilhada por toda a população.

Walter Salles e Daniela Thomas escolheram o polêmico período do governo Collor para contar uma grande história. Em Terra Estrangeira (Brasil e Portugal, 1996), o sentimento do exílio vai ser o grande centro da história. Temática que, particularmente, acho muito difícil de explorar. Acredito que o sentimento do exílio é único e só quem viveu isso sabe como é. Não é contar a história de pessoas que decidiram morar em outro país e, sim, de pessoas que foram obrigadas, por diversas razões, a abdicar de tudo: família, língua e sonhos.



Walter Salles optou por dirigir o filme todo em preto e branco, dessa forma, mostraria com mais realidade um tema tão difícil de capturar. Acredito que a película pode ser considerada mais um road-movie de Salles, como considerei Central do Brasil. O filme foca em estradas, em caminhos, tanto objetivamente quanto subjetivamente.

Paco (Fernando Alves Pinto) mora em São Paulo com a mãe (Laura Cardoso). O jovem é estudante universitário, mas que sonha em ser ator. A mãe do rapaz tem um grande sonho: voltar para a terra de origem, San Sebastian, no norte da Espanha. Paralelamente a essa história, temos o casal Miguel (Alexandre Borges) e Alex (Fernanda Torres), dois brasileiros que partiram para Portugal na esperança de construir uma vida melhor. Os dois chegaram lá como contrabandistas, porém, Alex só usou desse artifício para entrar no país, já Miguel ainda mantém as práticas de contrabando e é viciado em heroína.
Essa é a apresentação que nos é feita. Agora as histórias vão se desenrolar, morrer, se encontrar e se perder.

A mãe de Paco morre em frente a televisão após saber que todo o seu dinheiro, o qual ela usaria para realizar o grande sonho, havia sido confiscado pelo governo brasileiro. Paco se vê sem rumo com a morte da mãe. Agora, mais do que nunca, o jovem se vê obrigado a ir a San Sebastian, chegar à cidade, sentar e olhar por alguém: a mãe. Quando está num bar, bebendo para digerir o acontecido, conhece Igor (Luís Mello), um misterioso colecionador de antiguidades que aparentemente sem buscar recompensas resolve ajudar Paco. Paco não tem dinheiro, não tem condições de chegar à Espanha. Igor, então, propõe que Paco leve uma mercadoria até Lisboa e que lá ele receberia um dinheiro para chegar até San Sebastian. O que Paco não sabe é que Igor é um perigoso contrabandista e que foi ele também o responsável por mandar Miguel e Alex para Portugal. Chegando a Portugal e após uma série de acontecimentos que vão desde a morte de Miguel até o desaparecimento da mercadoria que o jovem levara a Portugal, Paco conhece Alex e se apaixona por ela. Os dois vão viver um relacionamento conturbado pela perseguição de Igor, pela indefinição dos fatos e pelo amor fervente que nasce entre eles.



Walter Salles usou durante todo o filme câmeras muito inteligentes e precisas, de agilidade inquestionável e trilha sonora que emite grande suspense na maior parte da apresentação da obra. Algumas metáforas também foram usadas, como o barco à deriva que representaria o momento pelo qual o Brasil se arrastava; a jogada de câmera que deixou a personagem de Fernanda Torres em cima de uma cruz e o jovem Paco a contempla-lá de baixo, quando ele se dá conta que encontrou a primeira pessoa que pode confiar.

A caracterização das personagens ao que nós julgamos ser o sentimento do exílio parece ser fascinante. É possível ver o vazio que se estende em todas elas, a nostalgia em relação à terra natal e, principalmente, a falta de raiz com qualquer tipo de relacionamento: seja no relacionamento com o próximo, mas, indiscutivelmente, no relacionamento cidadão/pátria, não existe sentimento de ser de algum lugar, não existem raízes. A desesperança constitui todo o sentimento que as personagens carregam consigo.

Terra Estrangeira é quase uma aula de Antropologia. Vemos a situação do Brasil aos olhos de outros povos, alguns bem menos desenvolvidos que o próprio Brasil, como é o caso dos angolanos que enxergam apenas a violência como característica do povo brasileiro. A invalidez de um passaporte brasileiro também chama a atenção, ele simplesmente tem um valor abaixo do normal por ser brasileiro. E tudo isso acontece dentro de um país considerado a escória da Europa. Portugal é periferia. É símbolo do que há de pior no continente europeu. O ponto que Terra Estrangeira quer tocar são as fronteiras. Quem delimita as fronteiras? Porque para alguns ela se torna mortal, como no caso de Miguel? A gente sempre tentando ultrapassar as fronteiras e entrando num lugar onde nos sentiremos estrangeiros, não pela barreira da língua ou da cultura, mas pelo sentimento de não nos sentirmos de lugar algum.



Todas as atuações do filme são de deixar o queixo caído. Fernanda Torres mostra, mais uma vez, que faz cinema como poucas atrizes brasileiras. Não existe vaidade que limite a total entrega da atriz para a personagem. Laura Cardoso faz uma ponta brilhante, talvez, seja dela, a única personagem que mantém laços com a esperança. O jovem e pouco conhecido Fernando Alves Pinto também dá conta do recado com perfeição.

A belíssima fotografia do filme também dá asas a nossa imaginação. Sempre cortada por ambientes crus e revoltos, a fotografia tem no preto e branco um auxílio magistral. A cena final em que Alex rompe com as barreiras entre Espanha e Portugal, cantando Vapor Barato em cima da voz de Gal Costa, tendo sob seu colo o amado ferido com um tiro no peito é de uma sensibilidade e beleza sufocadoras. A partir daqui não sabemos se Paco conseguirá olhar San Sebastian pela mãe, se a polícia capturará esses dois estrangeiros ou se tudo dará certo e, assim, Paco e Alex encontrarão a tão sonhada liberdade.

Na obra, o amor é a única opção de liberdade às duas personagens. Só o amor é capaz de trazer esperança de volta. E só a partir dele eu consegui encontrar a única maneira de definir o exílio.
O vazio? Esse fica. Como aquela pedra que a gente coloca no bolso e vez ou outra nos lembra do peso que tanto incomoda.

Um comentário:

  1. Oh sim eu estou tão cansado
    Mas não pra dizer
    Que estou indo embora...

    Muito lindo!
    Muito bom texto! Ótima escolha!
    Sucesso Guzinho! lindo!

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