quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Me Mira, la Muerte (Crítica: Volver / 2006)

“Guardo escondida uma esperança humilde, que é toda a fortuna do meu coração.”



Não sei como as pessoas reagiriam a uma opinião um tanto radical, mas acredito que não existem diretores tão talentosos, em atividade, como Lars Von Trier e Pedro Almodóvar. Dois diretores europeus que enfileiram obra prima atrás de obra prima. Lars com o seu recente Melancolia (2011) provou que, por mais que fale merda, é um gênio inquestionável. Não tem medo de ousar e mesclar ficção com os maiores medos e segredos do ser humano. Já Almodóvar encabeça a lista do melhor filme da década, o esplendoroso Fale com Ela. Também é dele genialidades como Tudo Sobre Minha Mãe (1999), Carne Trêmula (1997) e Má Educação (2004). Após quatro trabalhos consecutivos, em que presenteia o mundo com exímias obras de criatividade inesgotável, Almodóvar escreveu e dirigiu Volver (Espanha, 2006).

É incrível como bastam dois minutos de projeção para reconhecer um trabalho de Almodóvar, e isso não tem nada a ver com repetições, muito pelo contrário. Almodóvar é conhecido por ser um dos, senão o mais, brilhante diretor em exercício pela sua criatividade, pela plástica visual de seus filmes (talvez esse seja o fator maior de reconhecimento), pelo potencial infindável de eleger tramas e subtramas tão interessantes e encadeadoras de uma complexidade e um charme único.



Volver está longe de ser seu melhor trabalho, mas mesmo assim pode receber a alcunha de indispensável. Para filmar a película, Almodóvar voltou às raízes de uma Espanha estritamente rural, em que apresenta para o público o choque de mentalidades tomadas por superstições com a mentalidade uma Madri explodindo modernidade. O diretor voltou também a focar no universo feminino, na reação da mulher como força motriz de diversas situações inusitáveis, como a morte e o crime. Os homens não merecem nem um terceiro plano, são totalmente excluídos e só aparecem para dar fomento a complexidade do universo feminino, construído com muito bom humor e delicadeza pelo diretor espanhol.

Tente fazer a sinopse de um filme “Almodovariano” e veja como é quase impossível. Isso se deve a quantidade de curvas e portas do roteiro, quando você acha que tudo pode perder o sentido, o diretor tira uma carta na manga e te bota de joelhos em frente a sua película.

Volver envolve drama e comédia, recheada com uma boa dose de humor negro, mas de uma delicadeza insuperável. O filme conta a história de duas irmãs: Raimunda (Penélope Cruz) e Sole (Lola Dueñas). A primeira é uma mãe de família belíssima, que dá duro pra manter a filha Paula e o marido desempregado. A segunda mantém um salão de cabeleireiro ilegal dentro de casa e foi abandonada pelo marido. Em comum, as duas deixaram o vilarejo La Mancha, no inteiror da Espanha, e foram viver em Madri, além disso, perderam os pais num incêndio nesse mesmo vilarejo.



Atente ao fato de que Volver (no português, voltar) toca a todo o momento na questão da morte, em como ela é passado, presente e futuro. A morte também rondará as duas irmãs, Raimunda precisa esconder o corpo do marido Paco, o qual a filha matou após uma tentativa de abuso sexual. Sole convive com o aparecimento repentino do fantasma da mãe Irene (Carmen Maura, que volta a fazer uma brilhante colaboração com o diretor espanhol), após o falecimento de sua tia Paula, no antigo vilarejo, lugar que simbolizará a morte e os fantasmas da vida dessas irmãs. Uma esconderá da outra e se tornarão segredos escondidos no coração de cada uma. Junto a essa trama, surge Agustina (Branca Portillo), uma mulher sozinha, que após o falecimento de Tia Paula, descobre que foi acometida por um câncer e como última ação, deseja encontrar a mãe que sumiu na mesma data do incêndio que vitimou Irene e o marido. Perceba como a morte enfrenta os personagens, botando-os a todo instante de cara com o passado. Por que o passado? A película de Almodóvar é uma agulha que pica a gente durante todo o filme, a morte está parada em todos os cantos, a qualquer momento ela pode olhar diretamente nos seus olhos e te levar embora. Como a Irene fantasma, que “volta” para pedir perdão a filha Raimunda por seus olhos cegos do passado. A morte é como um moinho movido pelo vento de La Mancha.

É incrível a capacidade que Almodóvar tem de levar o filme por um caminho e de repente fazer uma curva brusca e direcionar a obra para outro caminho. O espectador não se perde, se mantém atento a cada salto de seu roteiro genial, a cada sutileza colocada em destaque em dado momento do filme, se delicia com os tons quentes envolvendo as ainda mais quentes mulheres latinas. O vermelho e o verde nos lembram a pimenta, e é tudo o que essa história é, uma dose apimentada de calor humano aos nossos olhos, ouvidos e alma.



Penélope Cruz, que antes de ganhar seu Oscar por Vicky Cristina Barcelona(2008), de Woody Allen, era muito criticada por qualquer papel que fizesse em território ianque. Eu hei de concordar com a maioria, acredito que a barreira da língua seja um obstáculo intrasponível para Penélope, mesmo no aug3e de sua beleza e talento. Nunca você verá a sensualidade e o brilho dos olhos dessa fascinante atriz em filmes que ela não fale sua língua materna, até mesmo no aclamado filme de Allen, onde ela também apela para um inglês carregadíssimo do sotaque madrilenho. Penélope brilha do começo ao fim do filme, desde o instante em que recolhe a arma do crime na cena, digamos que, hitchcockniana do assassinato do marido e a lava com uma câmera vinda do alto, valorizando seu belo busto. Penélope está quente, uma leoa, abandonada pelo parceiro, e protegendo sua cria. Como Allen fez com Diane Keaton em Annie Hall, Almodóvar faz uma linda declaração de amor a Penélope com Volver, com direito a uma indicação ao Oscar de Melhor Atriz, o primeiro de uma atriz espanhola.



Porém, havemos de concordar que Cruz não é nenhuma Meryl Streep, e não teria potencial nenhum para carregar o filme nas costas. É por isso que há volta de Penélope se encontram atrizes tão grandiosas quanto ela. Carmen Maura, que depois de Mulheres À Beira de Um Ataque de Nervos (1988), não tinha feito mais nada com Almodóvar, volta brilhante e seduzindo o espectador com suas cômicas aparições e desaparições. Branca Portillo num papel muito difícil não dá chances ao algoz, mergulha na fragilidade da personagem e entrega uma atuação digna de Oscar. Cannes premiou o elenco de Volver pelo conjunto. Merecidíssimo.



Almodóvar mostra que a narrativa não está em queda no Cinema, o negócio é saber usá-la ao seu favor. O diretor mergulha num universo do qual tem extremo conhecimento, mas não vivência, nem por isso a vida de sua obra se pareça menos luminosa ou um tanto caída, o diretor sabe como compensar isso. Pedro Almodóvar seduz o espectador apenas devotando suas esplendorosas personagens e intérpretes. O resultado é um trabalho genial, dotado de sentidos e marcas tão características do diretor. Pela sua generosidade, Almodóvar deixou que suas atrizes fizessem todo o balé e imprimissem a fortaleza da mulher em sua obra.

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Tinha Que Ser Você (Crítica: Noivo Neurótico, Noiva Nervosa / 1977)

"O amor é uma palavra muito fraca para definir o que eu sinto"



Sobre o filme a ser resenhado hoje eu quero dar vazão a dois principais aspectos: primeiro, é uma aula magnífica de Cinema, de experimentalismo, de inovação e ousadia; segundo, existem dois grandes filmes que abordam toda a especificidade dos relacionamentos amorosos como nenhum outro, aqueles que tocam na ferida aberta ou fechada e que te levam a um mar de reflexão inabitável, em que você é você mesmo no mais alto grau de crueza, despindo todas as dúvidas perante nossos olhos. O primeiro é um drama, trata-se do maravilhoso Closer – Perto Demais (2004), do gênio Mike Nichols, filme que traz, além de um elenco estelar afiadíssimo, uma nova roupagem a promiscuidade e realidade dos casos amorosos. O segundo não fica longe, é outro trabalho magnífico de outro gênio do Cinema, e assustadoramente trata-se de uma comédia romântica. É o clássico dos clássicos de Woody Allen, Noivo Neurótico, Noiva Nervosa (Annie Hall. EUA, 1977).

Você já parou pra pensar quando foi que o Cinema começou a inovar nas formas de se fazer um filme? Você deve imaginar que o Cinema não foi o que ele é hoje desde sempre. Por exemplo, em 1977 não era comum criar histórias que não seguissem a lógica do tempo, tampouco, a linearidade era regra, mas também não era usada (ou ousada). Por isso, o clássico de Woody Allen se tornou tão atual e expressivo em qualquer época do século. Ele ousa, sem deixar o espectador perdido, ele inova, sem que o espectador perceba, ele filma, sem que o espectador se preocupe.



Annie Hall, título original do filme, começa com o personagem de Woody Allen, Alvy Singer, num momento de reflexão, em que tenta desvendar as causas do fim de seu namoro com Annie (Dianne Keaton, linda). “Annie e eu terminamos, e eu não consegui tirar isso da minha cabeça”, é dessa forma que a obra começa e, a partir daí, veremos do começo ao fim tudo o que acometeu o casal.

Alvy, um judeu e comediante meramente famoso, é um cara neurótico, obsessivo, apaixonado por mulheres e por Nova York (é o mesmo personagem de Manhattan numa situação diferente), a crítica especializada diz que é o próprio Allen montando sua cinebiografia. O cara é crítico com as maiores besteiras do dia a dia, tagarela ao extremo, porém, todo o seu charme habita na sua ansiedade mesclada com sua impulsividade hipócrita. Annie Hall é quase que o oposto de Singer, uma cantora de bar, meio amalucada, e que só faz sexo depois de fumar maconha. O que esses dois tinham em comum? O que poderia dar certo nesse meio? A resposta? Um filme. Um grande filme.




Como já disse, Woody Allen quebra com todas as regras supostamente ditadas para filmar seu clássico. O tempo vai e volta sem nenhuma obrigação com as personagens, que entram e saem do filme e logo são esquecidas. Numa das cenas mais hilárias da obra, Annie e Alvy estão na fila do cinema, enquanto um metido a intelectual logo atrás deles bombardeia a companheira com as teorias do filósofo da comunicação de massa, Marshall McLuhan. Irritado, Alvy, sai da fila e detrás de um cartaz, ele puxa o próprio McLuhan pra dizer ao tal sujeito que ele não entendeu nada do que ele escreveu. Quando que no cinema nós teríamos uma interferência tão grande da realidade? Como que seria possível dar credibilidade a esse tipo de roteiro? Simples. Tudo se encaixa perfeitamente. Allen ironiza o próprio relacionamento e a forma como ele deduz que tudo pode ter dado errado.

Outras inovações também são muito pertinentes, como os momentos em que o personagem de Allen fala diretamente com o espectador, tentando explicitar algum ponto que possa ser menosprezado, ou então, nos momentos em que Annie e Alvy voltam em cenas do passado e começam a analisar, de corpo presente, as atitudes de cada um. Allen interfere de forma sublime na força narrativa do Cinema. Não impõe nada, sugere, experimenta e ganha nada mais nada menos que 4 Oscar nas principais categorias. A academia surpreendeu e foi surpreendida. Uma obra de comédia que leva o Oscar de Melhor Filme, Diretor e Roteiro é uma “transgressão” e tanto.



Quanto ao relacionamento do casal e porque eu acho que este filme se tornou um exemplo fabuloso de obras que abordam os relacionamentos amorosos, fica difícil explicar. O casal formado por Keaton e Allen é único, mas ao mesmo tempo muito próximo. O ritmo acelerado que o diretor conseguiu imprimir aos personagens e a narrativa faz com que a gente delicie essa obra quase que sem outra opção. Quando me dei conta o filme tinha acabado, minha opinião formada e, infelizmente (ou felizmente), inexplicável.




Annie Hall parece ser a mulher que todo o homem quer do seu lado, créditos a Diane Keaton, que levou o Oscar de Melhor Atriz por encarnar essa subversiva dos relacionamentos e também da moda. O figurino da atriz, que é composto por gravatas e coletes, algo mais masculino, virou febre entre as americanas no fim da década de 70. Keaton está perfeita, consegue ser leve e real sem ultrapassar limite nenhum. Woody Allen compôs o mesmo cara de sempre, embora, esteja perfeito, não soma nada ao currículo dele como ator. É como ele é, e eu não consegui me desprender disso. Confesso que me cansei dele quando ele chegou em Los Angeles a procura de Annie.

Allen é conhecido por ter uma língua afiadíssima, por conseguir trabalhar com a ironia e as críticas principalmente nas falas de seus personagens e não no visual, que sim, nessa época não era uma de suas grandes preocupações. Noivo Neurótico, Noiva Nervosa está em ebulição de novas ideias, de ironias preparadas pra voar na cara do espectador, de bom humor escrachado e implícito, de dores, fracassos, amores e planos, mas, na verdade, não passa de um puta de um filme de um baixinho ácido e louco por jazz. Acima de tudo, Annie Hall é uma declaração de amor a Diane Keaton.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

O Aroma que Habito (Crítica: Perfume: A História de um Assassino / 2006)

"E é nisto que se resume
o sofrimento:
cai a flor, — e deixa o perfume
no vento!".



Não sei nem por onde começar.

Após a insistência de uma pessoa (muito querida, por sinal), resolvi construir uma resenha crítica sobre Perfume – A História de um Assassino (The Story of a Murderer, Alemanha, França, Espanha. 2006). A minha resistência não tinha nada a ver com a qualidade da obra, que é inegável, muito menos com os possíveis defeitos que viesse a ter. Como disse Stanley Kubrick certa vez, Perfume era uma obra "infilmável", assim eu também consideraria um filme incriticável. Meu “medo” tem muito mais de impotência do que de entendimento. Não sei se dá pra entender, e é aqui que julgo o filme incriticável.

Perfume (é como eu vou me referir ao filme ao longo do texto) é baseado numa obra alemã de enorme sucesso, lançada na década de 1980 e traduzida para mais de 45 línguas. Patrick Suskind, autor do livro, relutou em vender os direitos de seu texto, graças a uma grande repulsa por adaptações cinematográficas. Em meio a isso, veio o interesse de grandes diretores, como Ridley Scott e Martin Scorsese. Porém, os direitos da obra só foram vendidos em 2001, quando caiu nas mãos de um diretor também alemão. Nesse momento, os fãs do best-seller comemoraram o fato da adaptação cinematográfica se manter em solo alemão.

A direção ficou por conta do talentosíssimo Tom Tykwer, responsável pelo grande sucesso Corra, Lola, Corra (1998). E nessa obra, podemos ver um lado totalmente distinto do que ele mostrou no seu grande feito. Aqui não veremos uma Franka Potente enlouquecida, correndo pelas vias da cidade, também não teremos explosão musical nem os cortes repentinos, pelo contrário, o filme se baseia numa estética muito mais subjetiva. O diretor teve que mudar muito do seu modo de dirigir, por isso se torna irreconhecível. A grande onda de sentimentos, quase que imperceptível aos olhos distraídos, é o grande trunfo dessa nova fase da carreira do diretor, se assim eu posso chamá-la.



A história se passa na França do século 18, envolta na sujeira e fétida fumaça dos tempos da Revolução Industrial, na correria de um Capitalismo embrionário, que já mandava e desmandava sem nenhum tipo de consideração social. Num mercado de peixe, embaixo da banca de sua progenitora, nasce Jean-Baptiste Grenouille (Ben Wishaw). Completamente guiado a morte, o bebê encontra no seu dom, o olfato apuradíssimo, a chance de viver, senão ele seria mais um dos filhos da feirante, que seriam jogados no rio Sena. Quando começa a chorar, Grenouille chama a atenção dos transeuntes e tem a sua oportunidade de viver. A reconstrução de Paris é simplesmente belíssima: O bebê jogado as traças, cheio de sangue, em meio à explosão humana da cidade transformou-se numa cena épica. Voltando a narrativa, a mãe é condenada por abandono e enforcada em praça pública. Restou a Jean-Baptiste o orfanato, onde será escravizado e virará fonte da renda da senhora que o abriga. Durante toda a sua infância no orfanato, Grenouille estará focado nos cheiros e perfumes que o rodeiam, desde a grama molhada até a água fria. Tudo é motivo de parar, apreciar cada odor e memorizar essência por essência. Ainda criança, Grenouille torna-se uma criança reclusa e solitária, numa linguagem mais facilitada: Estranha.

Mais tarde, o jovem é vendido a um curtume de confecção de couro, assim que dá as costas a senhora do orfanato, ela é assassinada por ladrões em um dos becos de Paris. Nesse curtume, Grenouille trabalhará 16 horas por dia e vai se manter fiel a seu chefe. Até que numa das entregas de couro no centro da cidade, Grenouille sente o aroma que mudará sua vida. Perseguindo o cheiro de uma jovem garota parisiense, Grenouille acaba por matá-la acidentalmente e descobre que esse mesmo cheiro se esvai junto com o último sopro de vida da pessoa. Obcecado por descobrir como preservar os perfumes que o surpreendem, Grenouille encontra um perfumista em decadência, o italiano Giuseppe Baldini (interpretado com afetação pelo mestre Dustin Hoffman), que após presenciar a genialidade do jovem com os odores e, claro, visando seu próprio lucro, comprará Grenouille de seu chefe, que também morre assim que o jovem vai embora. Procurei em diversos lugares algum texto que me esclarecesse as mortes de seus antigos “tutores”, mas não encontrei nada. Achei estranho que todos morressem assim que Grenouille fosse embora de suas vidas. Bom, sozinho, cheguei à conclusão, que Grenouille era uma espécie de estabilizador da ordem. Sua esquisitice mantinha todos em alerta e quando eram “dispensados” da convivência diária com Grenouille, acabavam por relaxar em sua vigilância (permitam-me a viagem metafórica).



É com Baldini que Grenouille vai aprender dar nome aos odores, apesar de que, o jovem parece ser muito mais talentoso que o ancião decadente. Mesmo assim, no que Grenouille busca, capturar e guardar cheiros, não vai poder ser auxiliado pelo mestre Baldini. É nesse instante que Baldini explica para o jovem Jean-Baptiste a lenda das 13 essências. Segundo a fábula, a combinação de 13 aromas proporcionará a quem confeccioná-la todo o amor humano e uma multidão a seus pés, conquistando, então, o mundo. Pena que Baldini não possa ensinar nada a ele sobre isso. Então, Grenouille parte para Grasse, a capital dos perfumes na época.

Nessa primeira metade, a história se mantém concentrada no personagem principal, na sua fixação por novos odores e, principalmente, nos indícios que o transformarão num assassino frio e calculista, embora, para mim, se pareça muito inocente. A trama corre lentamente, sem pressa nenhuma de mostrar mais do que deve antes da hora.

No caminho para Grasse, Grenouille descobre a grande sacada da obra: Ele próprio não tem cheiro. E esse é o grande motivo de possuir um olfato tão apuradíssimo. Grenouille chega a Grasse tomado pela obsessão de criar um cheiro para si, totalmente baseado na lenda dos 13 aromas. É nesse momento que o jovem passa a matar mulheres e experimentar novos modos de capturar o cheiro delas. Treze mulheres é a quantidade exata que Grenouille precisa para “dominar” o mundo. Em nenhum momento da obra, (eu, pelo menos) consegui enxergar o protagonista como um assassino, nem senti tanta repulsa. Isso acontece graças a pouca exploração que se tem no âmbito das cenas de assassinato. As cenas impressas no filme são muito mais ligadas ao domínio da arte que Grenouille tenta expressar, aos métodos de tentativa de capturar os perfumes femininos. Sua frieza é quase que sentida através de nossas narinas, mas seus olhos não conseguem esconder a inocência de um menino.



Quando entra em cena a jovem Laura (a lindíssima Rachel Hurd-Wood), o filme ganha uma nova face, algo mais perto de um thriller psicológico. Essa jovem vai se tornar a maior obsessão de Grenouille, pois é ela a dona do décimo terceiro aroma de seu perfume. O filme só se torna clichê quando entra em cena o pai da jovem, interpretado pelo eterno Severo Snape, Alan Rickman. Atrás de solucionar os casos de assassinato, o pai de Laura busca por meio de métodos do Direito e da Lei e Ordem, encontrar o rapaz e prendê-lo, proporcionando algumas cenas desnecessárias em que juntam tribunais, juízes e investigação a uma multidão de homens amedrontados pelo assassino em série.

Bom, não vou me aprofundar mais na história da obra, senão vou soltar grandes spoillers (mais do que eu soltei é impossível). Porém, quero chamar a atenção para a magnífica tomada final da obra. A população de Grasse ensandecida pelo prazer fugaz proporcionado pelo perfume de Grenouille. Na mesma hora pensei em Lars Von Trier. Atenha-se a cena, que consegue fazer uma crítica generalizada em poucos minutos. Detalhe: É uma orgia de proporções gigantescas.



É fato que Grenouille se tornou um homem sem emoções, impossibilitado de amar e ser amado, e julgou que “roubando” a dádiva que era o perfume de cada um, ele poderia, enfim, ser notado. Porém, como eu já disse, o perfume é fugaz, evapora com a rapidez de um estalar de dedos, nada fica, cada átomo de cada gota é um mero passageiro do tempo. Pela sua incapacidade de pensar em outra coisa que não seja cheirar (peço o perdão pela dubiedade), a personagem não se vê impedida por qualquer tipo de limitação, seja ela física ou moral.

Tecnicamente, o filme tem mais qualidades que defeitos. Com uma direção de arte fabulosa, uma fotografia esplêndida e um elenco competente (embora quem mais fale seja o narrador, trabalho exímio de John Hurt), o filme consegue proporcionar uma belíssima experiência de sentidos. Os defeitos que citei são mais particulares do que um dever no mundo do Cinema. A trilha sonora me pareceu exagerada, insistente. Embora seja muito boa, falta silêncio, momentos de reflexão tanto dos personagens quanto do espectador. A longa duração do filme (2h30m) também me pareceu desnecessária tornando o filme pesado e cansativo em diversos momentos. No geral, erros que não comprometem o resultado final da obra.



Eu consigo vislumbrar o principal motivo desse filme ter me conquistado: A capacidade de passar para o espectador a sensação atribuída ao mais complexo dos sentidos. Sentir cheiro que lembre a infância, concentrar câmera nos poros do nariz do protagonista, levar o espectador a uma viagem pela imaginação do personagem é o que torna esse filme “infilmável”. Apesar de tudo, conseguimos nos encantar pelo ambíguo amor que Jean-Baptiste sentia por esse vento enfeitado de aromas.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

A Bela da Tarde (Crítica: Bonequinha de Luxo / 1961)

Você não pode amar um selvagem, ele anseia pelo céu e, uma hora ou outra, te deixa.



Faltava um filme dela.

No ano em que Bonequinha de Luxo (Breakfast at Tiffany’s. EUA, 1961) comemora cinquenta anos, realmente não podia ficar faltando uma singela homenagem no Cinemática. Clássico dos clássicos, Bonequinha de Luxo figura entre os melhores filmes da década de 1960 e, sem dúvida, pode ser considerado o grande papel da carreira da belíssima Audrey Hepburn. Sim, na verdade, não foi por esse filme que Audrey conseguiu seu Oscar, ele veio bem antes com A Princesa e o Plebeu (1953), quando a atriz ainda engatinhava no mundo do Cinema. Mas, é com essa ode a mulher, que Audrey consegue mostrar tudo que é capaz de fazer: atuar com exímia qualidade, cantar, comover e fazer rir.

Para quem não sabe, inicialmente, o filme seria estrelado pela dama da década de 1960, Marilyn Monroe, que quando substituída por Audrey acabou criando-se uma inimizade pouco comentada entre as duas atrizes. A direção ficou por conta de Blake Edwards, mestre de comédias que beiram o tipo pastelão, mas que, mesmo assim, conseguem se configurar em ótimos filmes. Acredito que, além de Audrey, o grande mérito de Bonequinha de Luxo fica nas mãos de Edwards, que conseguiu transformar uma comédia romântica que tinha tudo pra ser fútil e piegas, numa verdadeira poesia que libera contornos de encantamento e inocência no mundo de uma bela mulher.

A história do filme é do célebre Truman Capote (que também já possui um ótimo filme biográfico). A obra de Capote é considerada um marco na literatura americana, assim como o filme se tornou um símbolo do cinema das terras de lá. Embora, Capote não tenha gostado da adaptação feita de sua obra, devido às grandes mudanças envolvendo o roteiro, o filme agradou em cheio tanto o público quanto a crítica especializada. Marilyn também havia sido cortada justamente por quererem transformar o filme numa coisa mais próxima a água e açúcar. Não quero nem pensar o que seria desse filme sem Audrey.



Audrey Hepburn
vai emprestar toda a sua elegância para Holly Golightly, uma jovem e linda mulher que vive em Nova York e espera num marido rico a grande chance de virar sua vida. Embora a personagem tenha sido bastante suavizada, pois no original ela continha traços de bissexualidade e promiscuidade (a realidade crua de Capote), a personagem do filme ainda se manteve como uma garota de programa, no caso, de luxo. Enquanto Holly impera no seu mundo sonhador, Paul Varjak (George Peppard) se muda para o apartamento do lado e logo os dois iniciam uma amizade. Ele é um escritor meio preguiçoso, sustentado por mulheres que o tem em troca, enquanto, Holly se mantém em sua saga.

O título do filme que traduzido literalmente seria algo como “Café da manhã na Tiffany’s” refere-se a grandiosa marca de jóias Tiffany’s, que é o lugar em que a personagem de Audrey procura esquecer dos problemas. Por mais que isso soe fútil, devemos tentar entender o mundo repleto de sonhos e inocência que rodeava Holly. Quando a amizade entre Holly e Paul (“Fred”) começa a se tornar mais intensa, tornando-se amor mútuo, a jovem se vê de frente com os seus próprios conceitos. Como ela abriria mão de sua liberdade por um amor? Ela iria agora viver dentro de uma gaiola novamente? Estaria, então, fadada a uma vida sem graça, repleta de amor, amor e amor?



A metáfora do nome do gato se constitui numa das mais belas jogadas do texto de Capote. Holly simplesmente chama o gato de “gato”. Segundo ela, o gato é como ela: não sabe quem é, não sabe qual sua função dentro do mundo, resta a ela viver de acordo com seus preceitos, assim como o gato. A história de amor entre Holly e Paul não é tão incomum. Paul é a válvula motorizada que vai impulsionar Holly a acreditar nessas coisas simples da vida. Holly ainda que tentada a vencer na vida, só se entrega a ele nos últimos três minutos de filme. Aliás a cena final é angustiante, desde as falas ao choro compulsivo e (acredite se quiser) contido de Holly.

Com um tema ainda que vanguardista: a mulher que quer casar por dinheiro e se tornar visível à custa do mesmo, a personagem tem suas aspirações. Holly não que ser uma dona de casa e viver em função do marido, em pleno ano de 1961 já é possível ver uma mulher em busca de sua autonomia sentimental, de sua existência em função de seus gostos e suas vontades. A cena em que você vê o tamanho grau de complexidade da personagem é muito doce. Sentada na sua janela com seu violão, Holly canta a belíssima “Moon River”, tomada pelo seu ar sonhador, pela sua beleza estonteante e pelo rapaz que espia a jovem com encantamento. Holly não é prendada aos afazeres domésticos, o apartamento vive virado de pernas para o ar, mas isso não impede a feminilidade da personagem,que é, talvez, a característica mais forte da personagem.



Se eu pudesse definir Hepburn em apenas uma palavra seria beleza. Não só a beleza física, mas a beleza da voz, a beleza da menina sapeca que pula de um sofá pro outro, que senta dentro da pia, a beleza da mulher em seu “pretinho básico”, a beleza de seus passos e a beleza de seu choro. Sem dúvida nenhuma, esse é o papel que transformou Audrey no mito que ela é hoje. É a consagração de uma atriz já consagrada. Audrey foi indicada ao Oscar pelo papel, mas perdeu pra Julie Andrews.



Bonequinha de Luxo não tem nada de muito surpreendente, o final é previsível (mesmo que se configure numa linda cena), alguns personagens são dispensáveis (como o vizinho oriental que aparece em mais cenas do que realmente é necessário). Mas, ainda assim, o filme é quase que impecável, irretocável, e tendo passado cinquenta anos, ele continua sendo obrigatório pra qualquer fã de cinema. Audrey falando em português gera tanto carinho pela atriz, que é impossível colocar em palavras. Aliás, eu só não perdoo Edwards e Capote, por não terem trazido Audrey para o Brasil, literalmente.

A classe e o charme dessa obra está definitivamente marcada na história de quem o assiste.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Por fora, nem o chão. (Crítica: Interiores / 1978)

Nunca houve espaço para sentimentos verdadeiros. Entre nenhum de nós. Nenhum.



A primeira obra do mestre Woody Allen a ser resenhada pelo Cinemática, não estará entre seus principais trabalhos, tampouco será parte de sua essência no Cinema. Bastante amado pelo seu tipo de humor instigante e inteligente, pelo desfile de suas musas inspiradoras na tela, o filme escolhido vai passar longe disso. Tem humor? Tem, mas um humor que pende mais para o lado da claustrofobia. Tem musa? Tem, sem nenhum apelo a vaidade, que é totalmente deixada de lado. A obra caminha por um lado pouco explorado pelo diretor.

Escrito e dirigido por Woody Allen, Interiores (Interiors, EUA. 1978) é, talvez, uma das obras mais depressivas da carreira do renomado diretor. Ele ainda usa de todos os seus truques e genialidades, mas, ainda assim, a obra se configura como sendo uma válvula de escape dentro da sua longa caminhada cinematográfica.



Interiores trata de família, trata de perdas e de como reagir a elas, fala de falso abandono na infância, cutuca na ferida dos irmãos potencialistas e dos mais “normais”, é um ode à solidão rodeada por pessoas. Allen escreve um roteiro que aborda de maneira minuciosa às questões de mais apelo na vida da família norte-americana conservadora da década de setenta. Corriqueiras questões como a preferência por um dos filhos, ou a aparente depressão pronta pra explodir, servem de mote para a decadência de uma família.

Claramente inspirado no estilo Bergman de se fazer cinema, Woody Allen fez de um de seus primeiros dramas um verdadeiro achado da carreira desse cultuadíssimo diretor.

Centralmente, Interiores trata do desmantelamento das relações afetivas de uma família. Tudo começa quando Arthur (E. G. Marshall) resolve se separar da mulher, Eve (Geraldine Page, saudosa e grandiosa como sempre). O casal não é o ponto central do filme. A narrativa se concentra nas atitudes, fracassos e traumas das três filhas desse casal: Renata (Diane Keaton, uma das grandes musas de Allen), Joey (Mary Beth Hurt, muito boa, por sinal) e Flyn (Kristin Griffith).



A palavra interior, que de alguma forma, dá título ao filme, cabe mais do que uma metáfora. Os interiores ganham vida, a casa que costumava ser decorada com árvore de natal, vasos caríssimos, atribuídos principalmente ao bom gosto da matriarca, passa a ser basicamente simples: mesas brancas, com cadeiras cruas, paredes limpas, taças reluzentes, tudo no tom de “bege e terra” . Durante o processo de demência da mãe, devido à separação conjugal, as filhas se revezam em suas angustiantes vidas para dar apoio a mesma. Renata é uma escritora talentosíssima que sofre com a síndrome de inferioridade do marido e com a inveja de Joey, esta ainda não descobriu sua verdadeira vocação e só tem como ponto de apoio, a preferência do pai, Flyn é objeto de desejo do marido de Renata e uma atriz fracassada. Repare: sem nenhuma estrutura social e interna, essas mulheres devem restabelecer os interiores da própria família, aliás, a palavra “própria” entra o tempo todo no texto de Allen.

Tudo se complica quando Arthur encontra uma nova companheira, Pearl (Maureen Stapleton, radiante). A mulher, que dá um novo sopro de vida ao rico empresário burguês, é também responsável por toda a tragédia (ou não) que vai acontecer na história. A ideia de uma separação revogável cai por terra e a situação se torna mais difícil de lidar.

Contudo, a história deve ser mantida com várias interrogações, não quero estragar o prazer que espero que todos tenham ao ver esse filme único de Allen.



Partimos então para algumas características da obra. Primeiro: a falta de trilha sonora, e isso, a gente só se dá conta no final do filme. Allen dá preferência aos diálogos permanentes, a fala jogada direto na cara do espectador. Não existem rodeios, você sabe na hora ou o silêncio se instala. Música é imperceptível ou quase inexistente. Segundo: as personagens incríveis que Allen conseguiu construir. Desde a seca Renata até a insana Joey, como da magnífica Eve até a gloriosa Pearl. As personagens se escondem do espectador, mas, ao mesmo tempo, pedem socorro, pedem auxílio nas causas que afundam suas respectivas vidas. Terceiro: o trabalho da direção de arte, que conseguiu acompanhar toda a melancolia da história, tanto nas roupas como nos cenários, nos dias nebulosos de praia e na depressão latente das casas.

A típica família burguesa colide com seus próprios preceitos de sucesso tanto na vida profissional quanto na vida privada. Todos tentam ser manter ávidos em sua monotonia, elegantes na sua posição social, fortes no pensamento familiar, mas nada disso se configura, tudo vira um caos e pacificamente (entenda isso como a imobilidade das filhas) vai se ajeitando.



O filme foi reconhecido com cinco indicações ao Oscar. Além de diretor, foi indicado na categoria de Melhor Atriz, para Geraldine Page, e Atriz Coadjuvante para Maureen Stapleton. Page realmente é assombrosa, desde sua voz confundida com uma súplica infantil até seu olhar, enfeitado com uma forte olheira. A atriz que faleceu há mais de vinte anos, incorpora de maneira impressionante o sofrimento da mulher submissa e arrogante. Indefinível. Stapleton também faz jus a sua indicação, não deve ter sido fácil ser a única alma feliz no meio de tanto conflito psicológico.

Na interiorização de seus personagens, de sua história, de sua fase bergmaniana, Woody Allen escreveu e filmou uma pérola, até então, muito bem escondida por uma ostra feroz que insiste em comandar sua carreira.