quarta-feira, 21 de novembro de 2012

A Mais Menina de Todas (Crítica: Martha Marcy May Marlene / 2011)

É o medo o sentimento mais incrível de todos porque cria a consciência completa. Ele o traz ao “agora”. E te deixa verdadeiramente presente.


Vencedor do prêmio de melhor diretor do Festival de Sundance em 2011, e tendo abocanhado mais uma série de outros troféus mundo afora, Matha Marcy May Marlene (EUA, 2011) vem sendo bastante elogiado pela crítica especializada, que, embora ressalte as relatividades quanto ao gosto do espectador, reconheceu o trabalho de duas revelações que não passam despercebidas por ninguém, o diretor do longa Sean Durkin e sua protagonista Elizabeth Olsen.

Olsen, com certeza você se lembra desse nome e, sim, elas são todas da mesma família. Elizabeth é a irmã mais nova de Ashley e Mary Kate Olsen, as gêmeas tão exploradas pela televisão norte-americana e pela “Sessão da Tarde” da Rede Globo. Porém, o que a novata consegue aqui, nenhuma de suas irmãs conseguiu durante uma carreira inteira: entregar um trabalho denso, difícil e muito festejado. Sean Durkis, o diretor, completamente desconhecido aos olhos do grande público, não faz feio no seu filme de “estreia”, mostrando que tem muito gás e muito talento pra dar vida a histórias ainda mais pesadas.


Todas as críticas que eu li a respeito de Matha Marcy May Marlene pareciam se estranhar no mesmo ponto: a nebulosidade da vida da personagem título. Eu vi o resultado final de forma diferente, embora concorde quanto à dificuldade de entender esse mundo tão especulativo, acredito que o papel de julgamento fica a cargo do público, já com suas idéias e sua carga experimental de vida. Ou seja, essa crítica se torna o mais pessoal possível e só assim é confortável fazê-la.

Após viver dois anos como membro de um culto abusivo, semelhante ao da família Mason (a mesma que acabou por assassinar Sheron Tate, esposa de Roman Polanski na época), Martha, personagem de Elizabeth Olsen, resolve fugir e, assim, tentar restabelecer os laços com a família. Sua única chance é a irmã (Sarah Paulson, ótima), a mãe e o pai morreram e o filme não faz questão de explicar muito isso, embora seja visível alguma espécie de trauma tangendo entre as duas irmãs e que, possivelmente, envolva a morte dos pais. Ainda assim, a irmã é a única que corre ao lado de Martha, a única que tenta (na maioria das vezes da forma errada) ajudar e recolocar a menina num saudável convívio social.


Não bastasse uma relação familiar bastante gasta, Martha ainda sofre com as fortes lembranças que tem da seita que participava. Explicarei um pouco desta. Numa fazenda, em que o sexo masculino claramente dominava, um grupo de homens e mulheres pregava a filosofia de viver sem possuir nenhuma dependência física e moral, fosse ela ligada a um sistema ou ao próprio ser humano. As relações ali deveriam se dar única e exclusivamente na base da confiança mútua. Tudo lindo, mas não. Os homens realmente mandam naquele espaço. Por exemplo, o líder, interpretado pelo sempre misterioso e não menos sensacional John Hawkes, era o responsável pela purificação das meninas que integravam a seita, que tinha como ritual de iniciação uma espécie de estupro, sofrido para elas e pregado como santificador por ele.

Os nomes empregados no título do filme são todos de alguma forma usados pra se referir a personagem de Elizabeth Olsen, batizada como Martha em seu nascimento, Marcy May na seita, e Marlene quando interrogada por desconhecidos de fora do grupo. Enfim, assombrada por todos esses fatos ocorridos durante sua permanência no culto, Martha foge e desesperada liga pra irmã, que a leva pra morar junto com ela e o marido (Hugh Dancy) numa belíssima casa à beira de um imenso lago.


O que se dá a partir daí é a tentativa de Martha em entender o que realmente sobrou dela nela mesma. Os fatos ocorridos na seita são mostrados incrivelmente bem através de flashbacks, que se misturam a sua dolorosa vida na casa da irmã. O encaixe de Martha em relações ditas normais parece quase impossível, principalmente depois que vemos o quanto ela tem de dificuldade em confiar nos outros, traço que o líder da seita já conhecia da personalidade de Martha. Daí, então, são sucessivos diálogos (em sua maioria, extremamente curtos) e tentativas frustradas de conhecer a verdadeira face de Martha. Os olhares não se alongam, as palavras se perdem e a escuridão finalmente passa a controlar os passos da garota. A irmã, que se vê num bico de sinuca e sempre prestes a entregar os pontos, tem mais medo da irmã do que amor, dois sentimentos que se misturam e juntos são responsáveis por sua semi-saga.

Quando Martha começa a perder o tato em relação a sua vida ela entra num caminho sem volta, não sabe mais o que é sonho e o que é real, não sabe discernir certo de errado e tragicamente abre as portas pra uma inicial, mas, ainda assim, violenta, loucura.


Já disse algumas palavras sobre Elizabeth Olsen no começo do texto, mas acho que seu empenho, num papel tão difícil, merece alguns outros elogios. A entrega de Olsen é tanta, que, logo no primeiro trabalho, a atriz teve que fazer cenas fortes de estupro e nudez, não deixando em nenhum momento o histrionismo invadir a cara de sua personagem. É difícil interpretar alguém fora de si, alguém rejeitado por si mesmo e Olsen, encabeçando um elenco muito competente, dá um show de interpretação. Junto com Jennifer Lawrence já se concretiza com uma das grandes atrizes de sua geração.

O final incomodou muita gente. Choveram comentários que exaltavam o filme até seus 5 minutos finais, pra mim a parte mais sensacional do filme. É, para a maioria dos grandes admiradores do Cinema, complicado assistir um filme que termina praticamente da mesma forma como pode começou. Então, atente-se a um único fato: Martha é um vento, talvez uma mega tempestade, passa, destrói e pode, ou não, passar de novo. Uma generosa dose de whisky ou de uma outra bebida forte é o mais indicado logo após a projeção.

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Pela Última Vez, Nós. (Crítica: Amantes / 2008)

"Pobre é o amor que pode ser descrito."


O que deveria ter sido o último filme da carreira de Joaquin Phoenix, agora já há distantes quatro anos, se revelou, então, um dos melhores filmes daquele ano. Surpresas? Sim. Joaquin Phoenix não só não encerrou a carreira, como nos dias de hoje emenda projetos grandiosos um atrás do outro, um deles é a parceria inusitada entre o ator e o excelente diretor Paul Thomas Anderson em “O Mestre”, provável “papa Oscar” na próxima edição do festival.

Phoenix já mostrou que tem cacife pra interpretar personagens profundos e tempestuosos. Tanto em Gladiador (2000), quanto em Johnny & June (2005), no que deveria ser o auge de sua carreira ao dar vida fictícia ao cantor Johnny Cash, Joaquin produziu trabalhos densos, estudados em seus mais ínfimos sentimentos e motivações, mas (agora uma opinião pessoal) nada tão completo e admirável quanto em Amantes (Two Lovers, EUA. 2008). Embora o filme, na maioria das vezes, tenha passado despercebido pelo grande público, temos aqui uma obra inteiramente real, sufocada em prantos vivos de uma história praticamente não contada até aquele dia.


James Gray, diretor do filme, retoma uma parceria pouco festejada com Joaquin Phoenix. Não que fosse ruim, mas sempre passava despercebida. Quem se lembra do primo louco de Mark Wahlberg em Caminhos Sem Volta (2000), lembrará de uma bela parceria entre o diretor e o ator. Porém, dessa vez, Gray estabelece uma linha tênue e muito mais sensorial (campo em que Phoenix leva bastante vantagem) para que o ator construa um personagem digno de reconhecimento pelo espectador, mesmo que esse reconhecimento seja, em grande parte, ponto de perda e sofrimento para quem assiste. Assim, Gray convence o público a acompanhar uma história impressionantemente sofrida do ponto de vista de um único homem: a emoção e suplantação de algo enorme, impossível de driblar ou esconder.

Leonard, personagem de Phoenix, acaba de tentar novamente o suicídio quando seu relacionamento amoroso dá-se, por fim, como acabado. Sem esperanças e ainda completamente desolado, Leonard volta pra casa dos pais, aonde finalmente esse homem maestrará suas mais íntimas angústias e seus mais ardentes desejos. Vale pontuar a relação subordinada que Leonard tem com seus pais que, embora muito carinhosos, não suportam e não compactuam com a depressão que o filho criará entre eles. Esses são a ficha razão da vida de Leonard. São os pais talvez os responsáveis por criar uma expectativa imensa na cabeça e no coração do filho.


É sabido que Leonard carrega nos ombros todo o peso do mundo e isso fica claro em cada cena que Joaquin Phoenix aparece (todas, vê-se aqui a tamanha bagagem emocional da obra), principalmente quando esse diz “eu te amo” e para nós, espectadores ou cúmplices, é nítida a tristeza, ou o drible e o esconderijo que não existem. Nessa nova tentativa de vida, Leonard conhece Sandra (Vinessa Shaw), tentativa dos pais de restabelecer a ordem familiar do filho. Apesar de ser um interesse amoroso, não é por ela que Leonard se apaixona, a surpresa se reserva nas escadaria de seu prédio, quando conhece a sensual Michelle, Gwyneth Paltrow numa absurda e concretizada chance de reciclar sua carreira.

Michelle soa como os ares de uma nova vida, uma opção ainda não tentada. A jovem mulher traz consigo todo o frescor de planos a serem idealizados, sexo a ser experimentado, loucuras a serem partilhadas. Ela é tudo o que ele buscava, mas não o que ela projetava. Leonard ainda sob as asas de uma família superprotetora e decisiva por ela acaba se tornando para Michelle, apenas mais um caso. Ela ama outro homem. E apenas o fato desse homem ser casado e consequentemente trazer uma porção de outras dúvidas, abre Michelle para a tentativa de viver essa paixão com Leonard.


Como um bote salva-vidas, Michelle acaba por se tornar uma ambição na vida de Leonard, que ainda tem a família pressionando um namoro/casamento com Sandra. Sem mais, a tragédia se anuncia.

Gray, que sempre apostou nesse relacionamento conturbado entre indivíduo e família, dessa vez consegue transpor para a tela um grau de dramaticidade, até então, não alcançado em toda sua carreira. É certo que existe um trabalho exímio na parte sensorial do filme, que conquista o espectador, expele os mais sórdidos venenos da alma humana e, como se não bastasse, brinca (dolorosamente) com as zonas de conforto estabelecidas por nós. A realidade e o alcance dessa mesma síntese do que é real e também do que é sentir emoção a flor da pele (fator quase impecável e encontrado principalmente nas atuações corajosas de Paltrow e Phoenix), são os maiores trunfos da obra. A força que move os personagens é o amor, mas é ele que acaba por destruí-los também. E, sim, tudo isso passa como um furacão por nós, sem deixar vestígios.

Sem mais, a tragédia recomeça.

domingo, 30 de setembro de 2012

Abraços Repartidos (Crítica: Um Sonho Possível / 2009)

Solidariedade é o amor em movimento


Falar que Sandra Bullock não é uma das figuras mais carismáticas do cenário mundial soaria como uma grande mentira e, de fato, seria mesmo. Seria mentira e hipocrisia minha dizer que a artista não merece todo o reconhecimento que tem como comediante e, agora, como atriz dramática, vide Tão Forte e Tão Perto (2011) de Stephen Daldry, um dos diretores mais sensíveis e certeiros da atual cena, e que, com certeza, ajudou Sandra Bullock a passar uma espessa camada de concreto em sua posição de “pau pra toda obra”. É só chamar que ela vai mesmo. A estrela de outros tantos sucessos como o duplo de Miss Simpatia e o charmoso Crash (2005), vencedor do Oscar de melhor Filme, já é uma das grandes atrizes de sua época, soe isso exagero ou não.

Figura comum, de beleza firme e séria, Sandra Bullock começou sua carreira de maneira tímida, não foi a comédia que celebrou a atriz pela primeira vez, essa viria depois de Velocidade Máxima (1994), onde Sandra começou finalmente a pesar no nome das produções. Ela é dessas mulheres que estão sempre em voga, mesmo depois de muito tempo sem ver Sandra Bullock, o retorno parece uma visita a casa da tia engraçada, bêbada e solteirona.

Mas, grandes estrelas causam grandes expectativas e, para Bullock não foi diferente. Aonde ela provava ser exímia na arte de provocar risos, do outro lado parecia temer o drama. As colaborações em filmes dramáticos sempre foram muito pequenas. Era como ver e não ver Sandra Bullock. Quando surgiu o convite para Um Sonho Possível (The Blind Side, EUA. 2009), Sandra teve a oportunidade de mostrar esse outro lado. Agora ela era protagonista de uma produção dramática.


Deixarei as impressões quanto ao trabalho da atriz ainda em secreto. Vamos ao filme.
Se naquele tempo, naquele local, amor tivesse nome, ele seria Leigh Anne Tuohy, a personagem de Bullock. Uma mulher rica, que carrega a profissão de decoradora bem mais como um passatempo, “o arejar das atividades cotidianas: coordenar empregados, fazer o supermercado, buscar os filhos na escola, tomar vinho francês com o casal de vizinhos tão bem-sucedidos quanto eu e meu marido”. Mas não, não é bem assim. Leigh Anne tinha tudo pra ser a mulher mais fútil do mundo, e é, só que com uma pitada bem generosa de bondade. Ela é o que a Carminha mente que é: religiosa, caridosa, amorosa. Só que é mesmo.

Do outro lado temos um garoto obeso, negro e pobre, filho de uma mãe viciada, que não dá a mínima pro filho. Michael Oher, o Big Mike, nunca soube o que era ter uma casa, vivia passeando por lares adotivos, nunca criando vínculo algum com quem quer que fosse. Era um ser sozinho, uma rocha viva, pulsando os mais incalculáveis traumas. Às vezes, me lembra a Precious, mas numa versão bem mais light e feliz.


Os caminhos dos dois se cruzam quando Big Mike passa a estudar na mesma escola que o filho de Leigh Anne. Como ele foi parar lá? Michael sempre foi muito forte e tinha o biotipo ideal pra um jogador de futebol americano, mas, ainda assim, era só força, algo que ainda precisaria de muita lapidação. Enfim, devido ao físico de Michael, o pai adotivo dele consegue colocar ele na escola, que via em Michael, apesar das notas pouco atraentes, a chance de algumas vitórias esportivas.

Sem ter pra onde ir, ou o que comer, as coisas começaram a ficar difíceis para Michael, que passou a vagar pelas ruas no arredor do colégio. Num dia desses, seu destino bate de frente com o da família Tuohy. Quando vê o menino na estrada, aparentemente com fome e com frio, Leigh Anne só pensa na possibilidade de lhe dar o que comer e onde dormir. Os Tuohy, então, o acolhem, dão comida, quarto, roupa lavada, escola e toda a força que terá de vir para que Michael supere todos os seus traumas. E é esporte que faz isso. Não só unir uma nova família em busca de um objetivo, mas reunir suas forças para mostrar que um sonho sempre é possível.


O futebol americano traz a metáfora para o título original do filme, uma complicação que não ouso explicar. Mas, é através desse esporte e com o apoio dessa nova família, que Michael Oher vai superar todos os seus medos e angústias e, sempre sob a ordem da família cristã, vencer na vida.

A direção de John Lee Hancock me surpreendeu, principalmente quando não “meteu o pé” na faceta melodramática da história, prevenindo-a de um tom piegas. Outro que surpreende é o jovem Quinton Aaron, intérprete de Big Mike, usando todo o seu tamanho para nos assustar e toda sua ternura pra nos resgatar.


Mas o filme só tem um nome e só serviu pra uma única coisa, render um belo Oscar de Melhor Atriz para Sandra Bullock. Sandra está ótima, confortável no papel, agradável como sempre, mas também não passa disso. Não sufoca espectadores, não os toca tão profundamente, não abre grandes sorrisos de admiração, mas caminha com um pezinho na frente do outro, uma piscadela escondida numa virada rápida e imperceptível, um sorriso solidário entre uma foto e outra. Assim, Sandra Bullock enche o papo de muitas de nossas galinhas e, quando chega ao final do filme, ganha um consentimento maduro de mais um admirador inconfesso.

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

O Espetáculo da nossa Existência (Crítica: Foi Apenas um Sonho / 2008)

Assim, soluçou a desesperança.
Ela estava aqui.



Dos augúrios de uma caminhada, o mais palpável deles será a falta de esperança. Expectativas podem (e irão) cair por terra e junto levar um casamento, uma família, algumas vidas.

O breve contexto serve pra situar o campo em que estamos pisando, os buracos cobertos com folhas e as armadilhas disfarçadas numa capa. Sam Mendes, diretor do incrível Beleza Americana (1999), é um dos diretores mais competentes quando o assunto é desnudar minuciosamente a sociedade americana, abrindo canais dentro do seu mais íntimo desejo, e correndo de mãos dadas da falsa moral construtora dessa massa única.

Se em Beleza Americana o diretor destruiu a plácida e orgulhosa imagem desse povo, em Foi Apenas um Sonho (Revolutionary Road, EUA. 2008) Mendes recobra todos os sentidos e características do mesmo “modelo de vida”, o “American way of Life”, para evidenciar seu nascimento, pautado por falhas, no âmbito de uma nação preconceituosa e extremamente valorizada.


A tarefa do diretor não é fácil, talvez, por isso o filme tenha alguns percalços desnecessários. A maça estava ali e deveria ser roída até o cabinho, assim eu vejo um pouco de superficialidade no tratamento do tema e na condução das personagens. Um aprofundamento maior só traria ganhos à película e ao currículo de cada um dos envolvidos. Por isso, também, o filme foi quase que completamente ignorado pela academia de cinema em 2009. Sam Mendes não é mais a galinha dos ovos de ouro.

Após muito enrolar, vou me reservar somente ao roteiro e suas nuances, que hora ou outra se perderá devido ao superficialismo momentâneo. O filme não segue uma estrutura linear, já no início somos apresentados a um casal em tempos de guerra particular. A primeira cena já é tão forte que dá pra temer o que o filme nos reserva. Num movimento de regressão, o filme nos leva a uma tímida festa em Nova York. Lá, April (Kate Winslet, primor) e Frank (Leonardo DiCaprio, absurdamente talentoso) se conhecem. Ela é uma aspirante a atriz, enquanto ele
transita por várias áreas sem saber realmente o que quer fazer. Juntos descobrem uma relevante afinidade: passar pela vida de forma espetacular, aproveitando cada segundo, fazendo valer cada respiração.


É claro que nada vai dar certo. O casal vai se perdendo, corroendo a si próprio, desvendando um aspecto nada solar de duas pessoas que supostamente se amavam. E aqui, mais do que nunca, entra a crítica psicossocial de Sam Mendes. Inventa-se um molde de vida com o qual temos que nos adaptar e, ainda, repassá-lo como absoluto. Presente do pós-guerra, dádiva do pré-feminismo.

O problema reflete algo podre dentro de nós e, assim, os personagens vão se descobrindo e nós nos apegamos ao papel de julgador, aquele que dá a nota ao final de tudo. O que acontece é que, aliados a uma promessa de vida, o casal se vê afundar na mesmice. Frank está preso a um trabalho que não gosta, dentro de uma empresa e sem nenhum tipo de reconhecimento. April se torna histérica e ácida à beira de uma pia, lavando pratos e pensamentos. A concretização de um modo de vida comum incomoda muito mais April do que Frank, já que ele vê na proliferação do dinheiro e no adultério uma maneira simplista de aliviar sua frustração. Ela não tem nada a perder, mas é quem mais perde.


Sem notar muito as opções individuais, nem mesmo as coletivas, o casal vai se arrastando na imensidão do vazio que os abasta. As coisas vão perdendo o sentido, os olhares vão correndo logo para o fim, e cada sentimento se prostrando como tal é na vida real. Os sonhos se tornam pesadelos, o respeito toma face incomunicável e o amor dá lugar a raiva. O ápice do desespero de April surge quando a dona de casa sugere que os dois façam as malas, peguem os dois filhos e “fujam” para Paris, lá ela iria trabalhar, enquanto ele estudava algo que ele gostasse. O bote salva-vidas de April fura facilmente, pois ela encontra a submissão do marido, que já foi consumido pelo medo de recomeçar. Frank não está feliz, tampouco pronto pra refazer o casamento.

Daí, pra acirrar essa miscelânia de sentimentos, aparece John (Michael Shannon, brilhante). O filho da vizinha e corretora de imóveis do casal, interpretada pela ótima Kathy Bates, sai de um manicômio e resolve fazer uma visita ao casal infeliz. É John, que tomado por uma angústia causticante, vai deliberar os diálogos mais impressionantes desse filme. De forma muito doída, Frank e April recebem como tapas na cara cada uma das palavras de John, que vai metralhando e esclarecendo a mediocridade que a dupla mergulhou. Tudo sucumbirá como um suspiro de morte.


Os olhares de profundo ódio que um começa lançar ao outro são magistrais. É incrível ver a esperança se esvair, ver a solidão e o egoísmo tomarem conta de uma família. Estou enjoado de dizer o quanto Kate Winslet é boa no que faz. Vencedora do Globo de Ouro de Melhor Atriz pelo filme, Kate se consagra como a melhor atriz de sua geração, provando que não existe vaidade que não possa ser suplantada. DiCaprio é, sem dúvida, o novo Robert DeNiro, misturado com a sensibilidade de Sean Penn e a dedicação leal de Robert Duvall. Ainda vamos ouvir falar muito de Leonardo DiCaprio.

Com uma direção de arte invejável, Sam Mendes vai dando forma aos seus pensamentos, criando mundos paralelos entre seus personagens e a plateia. Queira Deus que ele continue a trabalhar com tanto afinco e qualidade, tendo a colaboração de ótimos profissionais e a subordinação de uma legião de fãs (como eu).

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Repulsa (Crítica: Anticristo / 2009)

"O caos reina"


Está certo que Lars Von Trier é mesmo um dos maiores realizadores da safra atual. Não bastasse o próprio diretor se intitular dessa maneira, eu também vou me render, mais uma vez, ao seu brilhantismo. Cara difícil, antiamericano, simpatizante de práticas nazistas, como ele próprio declarou em Cannes no ano passado, gerando grande polêmica ao redor do mundo, Von Trier consegue fazer de seus filmes uma grande aula de roteiro, direção, fotografia e contemplação.

Criador do Dogma 95, o diretor tem em seu currículo filmes como Ondas do Destino (1996), Dogville (2003) e, o genial e mais recente, Melancolia (2011). A mais polêmica de suas realizações talvez seja mesmo Anticristo (Antichrist, Dinamarca, Alemanha, França, Itália, Polônia. 2009), como disse Roger Ebert: “um garfo no olho”. O que Anticristo gera nos espectadores é algo parecido com uma mistura de repulsa e sadismo, não sobrando espaço para uma única respiração.


Dividindo a maioria das opiniões, Anticristo deixa um rastro arrasador, independente da aceitação do filme. Se você gosta, se torna um apreciador imagético e sensato da obra de Von Trier, se não gosta, a experiência foi realmente dura. Filme forte, trágico, que necessita de uma boa dose de estômago e concentração pra ser levado. Aliás, ser levado pelo filme é o grande trunfo de Von Trier, que consegue construir um ritmo essencial à colaboração do espectador, já que a história, se não fosse o diretor, seria facilmente abandonada por quem assiste: a loucura não tem limite.

O filme é dividido em quatro capítulos, um prólogo e um epílogo. Logo de cara, Von Trier nos apresenta uma cena compatível ao seu brilhantismo. Em preto e branco, o prólogo de Von Trier dá margem aos acontecimentos que vão seguir o trágico início. Numa câmera lenta excepcional, o diretor coloca o casal protagonista, interpretado por Charlotte Gainsbourg (Palma de Ouro de Melhor Atriz em Cannes pelo papel) e Willem Dafoe, numa cena de sexo explícito, enquanto isso, o filho, ainda muito bebê, sai do berço, abre a janela e se joga do prédio (sim, crianças se suicidam). Como é do feitio de Von Trier, o momento da morte do bebê coincide exatamente com ápice do orgasmo da mulher, colocando em oposição o lado vítima e o lado culpada que se chocaram durante toda a película.


A todo o momento, Von Trier coloca as coisas em oposição, hora aproximando, hora igualando. Na medida em que a vida das personagens vai perdendo a cor, com o caos se instalando fervorosamente no cotidiano, o filme, ao contrário, vai ganhando uma fórmula imagética que plastifica todo o sentimento, a dor e as questões que envolvem a obra. A fotografia, belissimamente sincera, liga os pontos da dor e da realidade, movendo o espectador a uma proliferação de sensações até então inimagináveis. Descobrimo-nos sádicos, dramáticos, crentes e animais. Os animais é outro ponto chave dessa história, já que a raposa, o corvo, o lobo e o cervo dão o tom animalesco ao personagem de Willem Dafoe, incutindo a ideia de que a sua ciência (perdedora) e seu propósito (egoísta) não surtem efeito graças a sua semelhança com as coisas mundanas. O ar que tu respiras, o que comes e o que vestes não te faz diferente de nenhum ser. E aí que entra a ideia maior de Von Trier, diminuir o ser humano a sua mais temida face: o animal.


A floresta, ironicamente chamada de Éden, colocará os personagens frente a eles mesmos, ao nojo interno de si e do outro, a ligação entre dor e passagem, dor e momento. O Homem encontra sua pior face e tenta destruí-la, infligir dor, matar todas as suas células que possam dar uma posição saudável, de vida. E, acredite, essa dor não é sentida pela mãe, a perda do filho é a válvula de escape para o encontro do seu ser com a natureza, aquela que vai torturar, manipular e matar.

O trabalho dos atores é realmente sensacional. Os personagens não perdem nada em relação à complexidade de seus caminhos. O marido, que hora misógino, tentador do controle sobre a mulher, traça sabidos momentos de tortura sobre as feridas do lado mãe, como o sexo quando entra como fator de liberação dos sentimentos, enquanto ela, enlouquecida, só vê na satisfação da culpa o caminho da glória final. Deus pode não ter nada a ver com a história... ou ter tudo a ver com ela.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Strawberry Fields Para Sempre (Crítica: Educação / 2009)

“Mais cedo ou mais tarde, a teoria sempre acaba assassinada pela experiência.” (Albert Einstein)


Caminhos servem para serem trilhados. Escolhas são, mais do que fruto de devaneios, caminhos a serem trilhados. Quem passa incólume pelas escolhas, dificilmente cria experiência. Quem nega caminhos, improvavelmente lembra-se da vida que levou. Experiência é, inegavelmente, fruto dos nossos erros. Às vezes, e na maioria delas, traz sofrimento, culpa, arrependimento.

Educação (An Education, Inglaterra. 2009), dirigido pela dinamarquesa Lone Scherfig (recém-saída do Dogma 95, o mesmo que Lars Von Trier ajudou a criar), promove uma semi-discussão sobre as escolhas da vida e como elas podem afetar na construção moral de um ser humano. Através da contraposição entre educação, essa que é ensinada dentro de escolas, e experiência, adquirida da vivência humana, o longa espreme no espectador uma experiência catastrófica para uma menina de 16 anos no início da década de 1960.


Muitos dizem que o longa não insere nada de novo a esse tipo de discussão, já que o tema vem sendo pormenorizado pelo Cinema há muitos anos. Mas, é clara a diferença que existe entre esse filme e os tantos outros que se propuseram a discutir o papel feminino na década que iria revolucionar a vida da mulher dentro de uma sociedade, até então, machista. Essa diferença não reside só em preparações técnicas de cinema de primeira, como o exuberante figurino e a estonteante fotografia, mas também por se tratar do melhor roteiro de um dos grandes escritores das últimas décadas, Nick Hornby, o mesmo de Alta Fidelidade (2000) e Um Grande Garoto (2002). Dessa vez, Hornby adapta das memórias da jornalista inglesa Lynn Harber, um roteiro direto, pleno e, sem dúvida, sua melhor parceria com a sétima arte.

Jenny (Carey Mulligan, sensacional) é a menina de 16 anos que ficará indecisa entre dois distintos modos de vida. O primeiro trata-se da educação, mais pura e gradual que pode existir. Seu pai, interpretado pelo sempre competente Alfred Molina, impõe sobre a garota uma educação rígida, em que Jenny tem que ter as melhores notas da sala, para tentar pleitear uma vaga em Oxford, o lugar que Jenny enxerga como ideal. O segundo, vem na forma um homem mais velho, David, que ganha vida através do talento sempre esnobado de Peter Sarsgaard.


Vale lembrar que o pai de Jenny, apesar de ser muito rigoroso quanto aos estudos da filha, nunca impediu que ela fizesse nada, tanto é que quando a jovem conhece David, os pais de Jenny logo se encantam pela majestosa presença do rapaz. David chega na vida de Jenny como a promessa de uma vida diferente da qual ela levaria, caso continuasse se dedicando fervorosamente aos estudos, já que em nenhum momento ele é dispensado, apenas é tratado com menos importância, conforme a menina vai se rendendo aos encantos de David, ou melhor, aos encantos da vida que David lhe proporciona.

David é o desejável bon vivant. Dono de uma cultura extensa, que vai desde conhecimento da Antiguidade Clássica até o ainda desconhecido rock "yeah yeah yeah", mais tarde traduzido pelos Beatles, frequentador de cafés famosos, restaurantes caros e teatros particulares, David vai conquistando Jenny sem nenhum esforço. A menina que já era fascinada pela cultura francesa, por música clássica, por roupas finas, se rende a essa explosão atômica que passa a dar rumo a sua vida. Os estudos estão cada vez mais esquecidos, só a presença, sem nenhuma ideia construtiva, vai concretizando a vida acadêmica de Jenny. A educação passa a ser um investimento a longo prazo, enquanto um homem rico pode surpreender suas espectativas quanto a vida.


É certo que alguns atores foram muito mal aproveitados nessa película, como é o caso da veterana Emma Thompson, que surge como a diretora da escola que Jenny estuda. Ameaçando uma singela revolução aos costumes dentro da escola, Jenny encontra na diretora um empecilho feroz ao abandono da educação como prioridade da vida da mulher inglesa. O filme ainda traz Dominic Cooper e Rosamund Pike como os amigos de David que ajudarão Jenny na abdução ao novo estilo de vida.

É notável a mão leve da diretora ao traduzir uma história que podia cair facilmente no melodramático. Ao contrário disso, a diretora impõe um ritmo próprio ao longa, impedindo que a história fique tão blasé, como tem nomeou a crítica especializa na época de estreia do filme. Mesmo sendo reconhecido com várias indicações a diversos prêmios, inclusive o Oscar de Melhor Filme, a crítica insiste em diminuir a obra sem nenhum por que. O filme tem sim seus méritos e muito grandes por sinal, como é o caso do trabalho espetacular dos atores.


A novata (na época) Carey Mulligan impressionou o mundo com o retrato forte e inteligente dessa garota, que mesmo aliada a uma educação nata, deixou-se levar pela lábia fina de um homem culto. E aqui se encontra os dois lados da educação primorosa: enganar e ensinar. Mulligan, que foi indicada ao Oscar de Melhor Atriz e perdeu injustamente para Sandra Bullock naquele ano, é considerada, hoje, uma das atrizes mais promissoras do mundo, já que está envolvida em grandes trabalhos, com grandes atores e grandes diretores. Peter Sarsgaard não fica atrás, e a cada papel mostra mais um pouco de seu talento, que até agora custa a ser reconhecido pelas grandes premiações.

Os limites de bom senso da personagem parecem todo tempo transponíveis, é como se o preço de ser enganada valesse diante da vivência que ela se entregava. O final, embora um pouco previsível, reflete bastante essa segurança que a personagem de Carey parecia passar a cada cena, a cada diálogo, apesar de tudo ela sabia seu fim e o desejava, talvez como uma nova versão de uma feminista. Outro grande suporte das emoções dos personagens está na fotografia, que encontrou nas cores cruas uma solidez causticante ao produto final, permitindo uma dose infinita de paixão e crueldade aos atos impensáveis dessas criaturas humanas.


A direção de arte do filme também é outro espetáculo a parte, que junto com o elenco magistral, promove uma experiência no mínimo reflexiva ao espectador. Acho muito cruel rebaixar Educação ao posto de grande vilão da inteligência humana. Não é todo mundo que planta cinema, às vezes, essa pode ser a primeira experiência de um espectador quanto ao tema. Por isso, deve sim, ser respeitado e divulgado como uma obra memorável.

sábado, 21 de abril de 2012

Está chegando a hora de ir (Crítica: Por Uma Vida Melhor / 2009)

Digerindo a partida que me parte ao meio...



E se teu mundo fosse um pouco mais distante dos caminhos da sua cabeça? E se o mundo tivesse que parar de ser essa cabeça? Seríamos nômades, andarilhos e mendigos buscando seu lugar? O lugar do coração, o lugar da alma? Pense que todos nós temos um plano a ser seguido, aquela vida sem roteiro não existe, somos caçados por nosso próprio ser, somos intimados a achar o lugar da alma, independente da responsabilidade vir a galope e sugerir lugares e ideias de como deveríamos ser. Somos peças, um peão, um cavalo ou uma torre, somos rainhas e reis em busca do trono perfeito.

Uma hora a gente tem que partir, tem que dar corda nas costas e sair investigando cada canto plausível a você. Não existirá dúvida quando encontrar, não restará pedra que se meta a rolar. Você encontra seu lugar, consequentemente, você se encontra.

Retiro tudo o que eu disse. Minha família é o meu caminho, meu sonho é o sonho dela. Meu lugar é o lugar em que ela estiver. Seja pai, mãe, amigos ou cachorro, onde um estiver eu estarei, pois “metade de mim é partida e a outra metade é saudade”.



É um pouco de tudo isso que Por Uma Vida Melhor (Away We Go, EUA. 2009) se propõe a filosofar. Não é um filme melancólico, em que os personagens fazem da partida uma saga revolucionária da alma. Acima de tudo, é um filme reflexivo, delicado, preparado sob a iminência da verdade. Sam Mendes, diretor da obra-prima Beleza Americana (1999), deixa um pouco de lado toda a sua visão severa e crítica da sociedade norte-americana e produz um road movie desses de encher os corações de esperança.

O espectador pode ser levado a um poço mortal de desesperança se não acreditar que tudo é passível de mutação, porém, a intenção não é essa. Difícil de acreditar, mas Sam Mendes só quer contar uma bela história, sem emoções contidas, que venha fazê-lo refletir e mastigar a fábula da vida dura.

A história de um casal simples, monótono do interior dos EUA cai bem à fábula da vida dura. Ele um nerd que trabalha pelo celular e quer se casar, ela uma negra, grávida de seu primeiro filho, que é contra a instituição casamento. Esses traços de cada personagem servem apenas para elucidar que o problema que atinge inconscientemente esse casal, pode, e vai ser, gerado em qualquer tipo de pessoa. A saga amoral da partida não é plena quando não se tem convívio consigo mesmo. Burt (John Krasinski) e Verona (Maya Rudolph) formam um casal totalmente desprendido de pequenos problemas, tanto é que o problema de não aceitação do casamento pela mulher, não faz com que um ou outro ame menos seu parceiro. A vida parece ser mais adiante e o buraco mais embaixo. Não se tem razão pra viver mal quando a alma não é pequena. Por isso, após a decisão dos pais (Catherine O’Hara e Jeff Daniels) de Burt de se mudarem para a Bélgica, o casal não vê mais porquê em viver naquela cidade, que só os mantinha pela insegurança de Verona na criação de seu filho, vendo nos sogros uma oportunidade de auxílio imediato.



Meu bem,
No encontro ou na partida, lembre-se de mim.
Que um beijo ou um abraço não seja só o fim
Que no instante em que esteja do meu lado
Seu coração permaneça parado
.

Através de um roteiro muito particular, Burt e Verona iniciam uma jornada em busca do lugar ideal para se viver, para criar o filho e construir uma história pessoal (o roteiro toca muito na pessoalidade de cada um, mesmo quando são casais). O trabalho de contemplação de cada ator é genial. É através de olhos e olhares extremamente significativos que o roteiro e o produto imagético vai sendo construído. Mesmo quando esse casal, após rodar muito pelas estradas de seu país, encontra o lugar ideal para viver são os olhares e a postura de cada um em cena que vai nos dizer a intensidade da busca de cada um. Ombros pesados, olhos apertados e pés postura concreta na busca fundamental.



Um dos setores mais tocantes e que devem ser ovacionados durante o filme é, sem dúvida, a trilha sonora de Alexi Murdoch. Delicada como um ovo e dura como metal. A música entra como fator prioritário no entendimento dos personagens desse filme. É ela, junto com os olhares e a postura (no sentido mais grosso da palavra), que vai nos proporcionar a identificação dos momentos sublimes da alma da película: Ser feliz. E que, para ser feliz, não existe exagero, não existe cálculo, só existe uma vontade incessante a ser saciada.

Canto a vocês esse trabalho, do qual me orgulho muito de ter entendido e processado e, ainda, ter tomado como parte de mim, porque estou indo embora de um lugar que me faz muito feliz. Um lugar que eu cresci como pessoa, como amigo, como filho. Espero voltar um dia e que esse dia seja em breve, com boas histórias pra contar, com sinceros olhares para se trocar. Um abraço demorado em cada um de vocês. A gente se vê por aí.



Tudo acontece na hora certa.
Tudo acontece, exatamente, quando deve acontecer.

sábado, 7 de abril de 2012

Sobre cafés, cigarros e Inocência, a jovem dos meus sonhos. (Crítica: Pequena Miss Sunshine / 2006)

"Um homem não está acabado quando enfrenta a derrota. Ele está acabado quando desiste"(Richard Nixon)



Os corações partidos que me perdoem, mas o mundo pode e deve ser um lugar melhor. E essa tarefa não está nas mãos de grupos, comunidades ou classes, e sim no caminho do coração de cada um. A disputa moral entre vitória e derrota leva a crer que as pessoas se esqueceram que alguém sempre vai perder, que pra existir um ganhador, deve existir um perdedor. A derrota é inadmissível, nem como aprendizado ela é bem vinda. Podemos, sim, mascará-la de autoconhecimento, mas o sabor amargo e o temor sufocante são comuns a todos. Como disse Elis Regina: “Nem sempre ganhando, nem sempre perdendo, mas aprendendo a jogar”. Jogar aqui é igual a arriscar, tentar.

Caro leitor, a vida lá fora é selvagem e quem, por qualquer razão que seja, fingir não saber disso, vai perder sob os olhares causticantes da vitória. Faça de quem deveria ser seu amigo, seu inimigo. A vitória deve ser estrangulada. Quando alcançamos o posto de vencedor, pegamos a vitória pelo pescoço e estendemos a quem passar por nós. A vitória é um servo a serviço do ego. A derrota é uma amiga a serviço da vida. Saramago escreveu: Comemore tanto a derrota, a ponto de sorrir para a vitória.



Entre um gole de café e um trago do cigarro (agora caro) me deparei com a inocência, com o sorriso a troco de nada. Um canto poético e muito bem humorado da família problemática, suja e completamente imóvel as questões mundanas. Família de pé, família deitada, simplesmente família. Há muito tempo eu assisti Pequena Miss Sunshine (Little Miss Sunshine, EUA. 2006), mas nunca fez tanto sentido como faz agora. Filmes que retratam a disfuncionalidade de lares capitalistas estão cheios por aí, mas poucos são tão ricos como esse.

O drama não está na prefação de cada personagem, não está na impossibilidade da vida financeira, e sim, no retrato de uma família que não consegue se firmar como tal. Esconder segredos, prestar erros a humanidade é simplesmente o ponto de escape da história, o problema mesmo está mais no fundo de suas entranhas, que no final acaba sendo comum a maioria das personagens.

Como toda obra, genuinamente disfuncional e bem humorada, tem que existir um ponto inicial, excêntrico talvez, mas que vai levar seus personagens a uma nudez incomparável perante o espectador. Não que seja obrigatório existir reflexão dentro do filme, nesse, na minha opinião, não há. Simplesmente os personagens passam por uma situação de crescimento rasa (mais real impossível), como se eles ainda precisassem passar por tantas outras experiências de esclarecimento. Pequena Miss Sunshine e sua história é o “start” nos planos e nas ideias de cada um.



O drama da família Hoover pode ser o drama de tantas outras famílias ao redor do mundo quanto pode não ser. O roteiro se torna aceitável por transmitir tanta verdade e fortes sensações imagéticas ao afortunado senhor espectador. Seja sob a inconsciência arrebatora do pai (Greg Kinnear) ou à suposta intervenção amorosa de sua mãe (Toni Collette), talvez sob o egoísmo puritano do irmão mais velho (Paul Dano) ou da vivência sem limites do avô (Alan Arkin, fabuloso), nada disso põe obstáculos ao sonho da pequena Olive (Abigail Breslin, inspirada pela mesma inocência que abre sorrisos durante a sessão), disposta a tudo para se tornar uma Miss. O problema reside no fato de que Olive não possui as “certas” medidas que a levariam até a vitória. Dona de uma adorável pancinha, cara buchechudinha e óculos maiores que seu rosto, Olive, sem pestanejar por um segundo, exige que a família atravesse o Estado do Novo México, com destino a Califórnia, para que assim ela pudesse se tornar a próxima Miss Sunshine.

Junte a essa família, o tio gay e suicida, interpretado pelo comediante Steve Carrell (também inspiradíssimo) e coloque todos dentro de uma arcaica Kombi amarela, que precisava ser empurrada por todos os tripulantes a cada nova parada. A viagem é marcada pelos mais diferentes eventos. Primeiro, a morte do avô viciado em sexo e heroína, que imediatamente é enrolado num lençol e colocado no porta-malas do veículo. Segundo, o descontrole emocional do, até então, calado irmão, após saber que era vítima de daltonismo e, assim, não poderia ingressar na força aérea. Finda-se, então, um pacto de sobriedade entre a menina de pouco menos de dez anos e o tio marcado pelas tentativas de suicídio. Cada um agirá de um lado, mas, ainda assim, implantando mais um trauma na própria disfuncionalidade.



A dupla de diretores, Jonathan Dayton e Valerie Faris, veteranos na direção de videoclipes, mostrou que a primeira vez pode ser de fato uma grande surpresa. No caso, muito boa. Plantados sob o roteiro de Michael Ardnt, o trio construiu um Road-movie (gênero de filme tão bem filmado pelos norte-americanos) repleto de falas geniais, humor negro familiar de muito bom gosto e, por fim, uma obra, inesquecível. Isso se deve muito a naturalidade com que a dupla de diretores encarou o roteiro de Ardnt, que tinha tudo pra cair na vala comum. As imposições do ritmo timidamente acelerado, a trilha sonora simples, ajudaram a criar uma obra única no aspecto que vem discutir.

Seja pela questão fílmica ou societária, o filme parece um tremendo coração prestes
a sofrer uma pane. O tio suicida se baseia em Proust, o irmão incomunicável em Nietzsche, a mãe na vida doméstica e atarefada, o pai no dinheiro. No meio disso tudo, a inocência. As chances de Olive ganhar são mínimas e, por isso, seu pai tenta impedir a garotinha de participar do concurso. Estranhamente, é a opinião da garota que prevalece, sempre. Como eu disse, ela se torna centro comum a todos os personagens por um tempo de esquecimento das mazelas da vida.

Abigail Breslin é uma fofura como a jovem Olive. Indicada ao Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante, a jovem atriz se despiu de uma vaidade normalmente infantil e deu a cara a bater na hora de estrelar a jovem sonhadora. Imagine como é pra uma criança ter que subir num palco com uma dezena de barbies, todas magras e maquiadas. Por mais que seja atriz, é coisa que eu só gente grande fazer. Outro estouro é Alan Arkin. Vencedor o Oscar de Ator secundário por dar vida a esse homem nem um pouco meticuloso, que sai no começo do filme, mas é lembrado até o último minuto. Vale lembrar que o elenco todo encontra-se em estado de graça.



Apaludido de pé no Festival de Sundance, Pequena Miss Sunshine tem seu valor para com a sociedade. Não é feito de simples ou absurdas personagens, que tentam por algum motivo se tornarem parte de alguma coisa. O raio sol que há de raiar para nós deve ser comumente desviado aos Homens. E Pequena Miss Sunshine, no fundo, toca nessa ferida: a paixão por vencer, vencer e vencer, sem se preocupar com o lugar ou a vida que estamos pisando. Eu admiro os raios de sol e os divido com todos os seres tão disfuncionais quanto o cara que bebe café, fuma e escreve uma crítica inocente às 07:00 da manhã. Que Deus seja misericordioso, que Saramago seja lembrado, que Olive mereça um retrato na estante da minha memória.

sexta-feira, 23 de março de 2012

O Signo de Deus (Crítica: A Árvore da Vida / 2011)

"Uma vida não questionada não merece ser vivida." (Platão)



A vida é a verdadeira busca pela redenção. Seria esse o significado de nossa existência? Será essa a filosofia da humanidade: encontrar a chance de perdão e entender nossa pequenez diante do universo, passando por processos tão dolorosos e arrasadores? A humanidade é fraca, sempre precisou de atenção e poder para criar um universo paralelo ao mundo real, gritou leis e impôs caminhos que a levasse aos pés de Deus.

Partir do luto para entender os signos de nossa existência é uma tarefa bastante dolorosa, mas que pode levar o indivíduo a uma experiência transcendental e magicamente poderosa. Ninguém passa incólume pela dor. Reza a lenda que quando um singelo passarinho perde um de seus ovos do ninho, ele entra em processo de luto eterno. Um chimpanzé é capaz de chorar dias a fio a perda de sua prole. O caminho, sendo o da graça ou o da natureza, implica em humanidade, implica em lágrimas, em fraqueza, em melancolia anunciada para o resto de nossos dias.

Diante de uma reflexão extremamente filosófica e muito particular, Terrence Malick escreveu e dirigiu A Árvore da Vida (The Tree Of Life, EUA. 2011). Terrence é um desses diretores geniais que, por alguma razão, insiste em ser diretor de poucos filmes. Responsável pela realização de grandes filmes (são cinco no total) como Além da Linha Vermelha (1998), Terrence é muito conhecido por ser um homem de poucas palavras (às vezes taxado de antissocial) e bastante alheio a premiações, como foi o caso do último Festival de Cannes, no qual o diretor foi coroado com o prêmio máximo, justamente por A Árvore da Vida, mas não compareceu para recebê-lo.



Apesar de poucos filmes no currículo, Terrence também é conhecido por uma genialidade fora do normal. Capaz de imprimir uma sensibilidade que toca o espectador como uma pluma, mesmo vagando por um tema tão difícil e subjetivo, Malick construiu um dos melhores, senão o melhor, filme do ano passado. Altamente contemplativo, Árvore da Vida chegou ao espectador como uma das grandes promessas do ano. Muitos contestaram o trabalho do diretor, enquanto outros dobravam seus joelhos perante a figura de Malick. Confesso que sou um desses que teve os joelhos dobrados sem esforço algum. Bastaram trinta minutos de projeção e ali estava eu: plantado em frente à tela.

Reconhecer a ousadia do projeto é o primeiro passo pra nascer uma afinidade entre você e o filme. Não pense você que é um filme fácil, NÃO É. Não é fácil pra quem está assistindo e duvido que tenha sido fácil para todos os envolvidos no trabalho. A primeira questão é sem dúvida o tema, a história que Malick quer contar.



No seio de uma família meramente normal (pai, mãe, três filhos homens), o roteiro vai caminhar na direção de questionar a pequenez do ser humano do mundo, a finitez de nossos problemas e perdas frente aos avanços da natureza e o simbolismo de Deus. Todos esses questionamentos terão como base a morte de um dos filhos do casal e, estas questões, serão levadas a ferro ao espectador, através da angústia do filho mais velho, interpretado por Sean Penn na fase adulta.

Entenda que o filme não produz um discurso falado, a maioria de suas respostas serão encontradas em cenas de pavoroso silêncio (raramente cortadas por susurros) e através de um discurso totalmente imagético. Existe uma passagem na obra, em que, durante cerca de vinte minutos, nos é mostrado cenas de “rotinas naturais”, como quedas d’água, vulcões em atividade, explosões no cosmo, planetas em órbita, dinossauros, a origem da vida, passeios pela matéria, todos eles conduzidos por uma trilha sonora fortíssima ou uma reflexão filosófica carregadíssima de aura melancólica.



O pai da família, interpretado com vigor por Brad Pitt, é símbolo de uma época carregada de princípios morais e um homem que não conseguiu fazer o que realmente sonhava: ser um músico. Na ânsia de ver seus filhos como homens corajosos, fortes no sentido de encarar os problemas da vida adulta, acabou por pecar numa educação autoritária e, por vezes, machista. O filho mais velho é o que contesta as atitudes do pai, embora isso aconteça muito raramente frente a frente. O menino age intimidando os irmãos mais novos, colocando-os em risco de morte, quebrando janelas do vizinho, tentando manter uma postura rebelde, mas não enxerga que quanto mais pratica ações tentando se desprender da figura paterna, mais ele se parece com o genitor. O personagem de Pitt não deve levar toda a culpa nessa história, já que ele é um simples produto de uma sociedade caracterizada por esses moldes tão comuns naquela época.



A mãe (Jessica Chastain, que empresta todo o seu brilho a mais uma personagem em 2011) é a delicadeza em forma humana. Responsável por intermediar a relação entre pai e filhos, acaba sendo a peça mais endeusada do trabalho. Auxiliada pela belíssima fotografia de Emmanuel Lubezki, a mãe está sempre envolta numa luminosidade muito grande, seja quando esta se rende a dor da perda do filho ou quando encara o marido numa de suas raríssimas intervenções ao método educativo do patriarca. A figura de Jessica Chastain é capaz de levitar aos céus, graças a essa prática tão simbolista.

As perguntas direcionadas ao nada são constantes. Os questionamentos do modo de vida e o não merecimento de dádivas de acordo com essa forma de viver também permeiam toda essa narrativa estendida à consolidação de um significado a causa humana. Seríamos nós produtos e como produtos nossa insignificância é maior ainda? Será que alguém olha por nós? Tudo o que é dado e concedido ao homem pode ser tirado a qualquer hora e, mesmo assim, existir uma justificativa?



É trabalho de sensibilidade gritante, não existe meio caminho pro espectador, vá pela filosofia, vá pela lógica dos sentimentos. Nós somos produto desse meio, somos fantoches nas mãos da Natureza, que aqui é tão performática e poderosa quanto Deus. Somos reféns de uma decisão maior. Estamos presos num capítulo selvagem da história do universo, que pode acabar ou não, mas isso não impede as tais reflexões. A essência da vida é a grande filosofia da vida.

Escute o que o Diabo disse: “A perda só será sentida quando a primeira lágrima secar. A cabeça do homem insiste em achar que alguém olhará por ele, que alguém pagará o preço de sua perda. Quem paga é você mesmo. Continue a seguir nesse caminho infinito de redenção, em que você perde... ou perde.”

terça-feira, 13 de março de 2012

Poemas Sombrios (Crítica: As Virgens Suicidas / 1999)

"Essa obrigação de ser feliz, paradoxalmente, nos deixa cada vez mais infelizes."



Se existe uma mulher, pela qual eu preservo profunda admiração, essa é Sofia Coppola. Filha de um diretor e roteirista genial e dona de uma carreira sólida, construída com afinco e uma responsabilidade genuína, Sofia se destaca no cenário como uma das diretoras e roteiristas (herança paterna, sem dúvida) mais talentosas de nossa época. Vencedora do Oscar pelo roteiro de Encontros e Desencontros (2003), Sofia plantou diversas quatro sementes de uma personalidade absurda. Desde Maria Antonieta (2006), com aquela trilha sonora ávida e aquele charme tão característico de sua direção de arte, até seu trabalho mais festejado, o já citado Encontros e Desencontros, faz da diretora uma das mais encantadoras cineastas do momento.

Sofia Coppola possui apenas quatro filmes em sua carreira, o primeiro de 1999, que se trata de As Virgens Suicidas (The Virgin Suicides, EUA. 1999) e o último, o subestimado Um Lugar Qualquer, de 2010. Isso me lembra bastante Stephen Daldry, não pela qualidade de seus trabalhos, que são bem distintos, mas pela carreira tímida e ao mesmo tempo tão sólida e festejada. Após uma ponta em O Poderoso Chefão 3, filme do pai, Francis Ford Coppola, Sofia resolveu investir na carreira de diretora e roteirista, mostrando um talento único como roteirista também. Episódio, que eu como grande admirador de seu trabalho, comemoro muito.



As Virgens Suicidas, que foi produzido pelo pai e teve roteiro adaptado do livro de Jeffrey Eugenides, trouxe Sofia para o estrelato. No primeiro trabalho, a diretora se mostrou tão segura e inovadora a ponto de desenvolver desconfianças quanto a originalidade do projeto e até mesmo de seu comando. O filme tem seus erros característicos de uma diretora estreante. Mas, quem sou eu para dizer que Sofia Coppola está errada? E é isso que tanto me encanta na filmografia de Sofia: a capacidade de perturbar o espectador sem a perder a sensibilidade e a calmaria do mundo de uma cineasta mulher. Poucos diretores homens possuem essa válvula tão apreciada por nós cinéfilos. Sofia não cria um universo a partir de conceitos mundanos, ela cria conceitos a partir de um universo muito próprio e valente.

O primeiro trabalho de Sofia é quente sem queimar, lascivo sem proclamar, assustador sem assustar. Escolher dar vida a cinco adolescentes suicidas não é um primeiro trabalho fácil. Exige do diretor uma sobriedade e um controle emocional muito grande, principalmente pela forma como o roteiro foi escrito. Nãos se criam vilões, não se criam heróis, apenas uma história extremamente perturbadora, uma mão que entra pela boca e revira seu estômago, um choque previsto. O desenho magistrado pela profissional grita aos nossos olhos por clemência e nós, como já sugere o título do filme, entregamos a decisão a essas garotas suicidas.



O filme começa com uma tentativa frustrada de suicídio da caçula de cinco lindas irmãs, filhas de um pai doce (James Woods) e controlado pela fé de sua mulher (Kathleen Turner), católica fervorosa. Não sabemos o que leva a irmã mais nova a tentar o suicídio, até que Sofia começa a desvendar as personagens de sua obra. Os pais agem como sombras dessas adolescentes, controlam o que elas ouvem, o que elas leem e o que elas assistem. Como eu disse, eles não são pintados como vilões nem as meninas são tidas como heroínas. Para contar a história dessa família, Sofia usa um grupo de meninos que tentaram desvendar quem eram aquelas lindas meninas e a causa do suicídio.

As meninas da família Lisbon são objeto de desejo de todos esses meninos, apesar de não serem as líderes de torcida do colégio, elas são as mais populares, justamente por ninguém saber quem são as garotas Lisbon. O que se passa na cabeça dessas meninas? Paralelo ao que elas poderiam ter e não tem, por que elas causam tanto encanto, tantas perguntas, tantos olhares intrigados e admiradores?



Após a tentativa de suicídio da irmã mais nova, os pais, num acesso de proteção e prevenção, resolvem integrá-las a comunidade. No meio de uma festa, dada sob a vigilância dos patriarcas da família Lisbon, Cecilia, a menina mais nova, obtém sucesso em sua segunda tentativa de suicídio.

A partir daqui, Sofia cria uma rede totalmente presa a detalhes mínimos da vida dessas garotas. O filme, apesar de totalmente inteligível, exige do espectador uma atenção e uma sensibilidade disforme quanto aos passos de suas personagens. O trabalho dos pais frente a evolução do descontrole aparente da situação, a fuga imaginária das meninas em direção ao trágico final, a admiração plena e sofrida dos meninos da rua. Tudo isso explicará uma tragédia já anunciada. É como se as garotas Lisbon fossem apenas um ser humano e por este ser humano se multiplicasse as tragédias pessoais. Encostar na mente das meninas suicidas é um trabalho árduo, em que o espectador pode ficar totalmente aturdido ou incrivelmente pacífico.

A proposta de desnudar esses dogmas culturais que empacam a vida dessas garotas, deixa o espectador plantado numa voracidade fiel aos sentimentos compartilhados ou combatidos pelas personagens. O mal não se entrega, não traz o óbvio. O maléfico é o todo, o vilanismo que não mostra as caras, pode ser encontrado na televisão virada ao contrário, na religião representada por um símbolo no pescoço da mãe Lisbon, na infantilidade presente no amadorismo de suas personagens principais ou, até mesmo, na suposta trilha da precocidade aflorada. Lembre-se, meu caro, a menina mais nova é a primeira a tirar a própria vida, é a primeira a contestar seu quadrado e reproduzir seus sentimentos nas outras irmãs.



Kirsten Dunst que faz o papel da Lisbon que promove uma luta entre seus desejos e a obediência, tem de longe, a personagem que mais se destaca. O jogo que ela faz consigo mesma é tão contraditório quanto a solução ou a tentativa de solucionar que os pais não buscam. Sair de biquíni a rua e tomar sol no jardim, somente aos olhos dos pais. Sair com o cara mais paquerado da escola, somente com a concordância dos pais. Mas o que ela faz entre quatro paredes, o que ela implica com sua explosão de expressões, isso seus pais não devem sequer sonhar.

O universo criado por Sofia Coppola faz jus a história. A fotografia “amanhecida” sempre presente nos trabalhos de Coppola, a direção de arte incumbida de trazer a serenidade frágil de suas personagens. Tudo implode numa rede de fornecer melancolia a um universo melancólico por si só. Constrói-se um mundo de calmaria disfarçada, de pacificidade polida, mas que consegue te perturbar e derrubá-lo como um furação.



O isolamento presente como princípio básico da união e bom convívio dessa família, vai corroendo as entranhas e o oxigênio dessas garotas. Que numa cena espetacular, de brilhoso talento de Sofia Coppola, deixam a vida por um bem, desejavalmente, maior.