segunda-feira, 28 de maio de 2012

Repulsa (Crítica: Anticristo / 2009)

"O caos reina"


Está certo que Lars Von Trier é mesmo um dos maiores realizadores da safra atual. Não bastasse o próprio diretor se intitular dessa maneira, eu também vou me render, mais uma vez, ao seu brilhantismo. Cara difícil, antiamericano, simpatizante de práticas nazistas, como ele próprio declarou em Cannes no ano passado, gerando grande polêmica ao redor do mundo, Von Trier consegue fazer de seus filmes uma grande aula de roteiro, direção, fotografia e contemplação.

Criador do Dogma 95, o diretor tem em seu currículo filmes como Ondas do Destino (1996), Dogville (2003) e, o genial e mais recente, Melancolia (2011). A mais polêmica de suas realizações talvez seja mesmo Anticristo (Antichrist, Dinamarca, Alemanha, França, Itália, Polônia. 2009), como disse Roger Ebert: “um garfo no olho”. O que Anticristo gera nos espectadores é algo parecido com uma mistura de repulsa e sadismo, não sobrando espaço para uma única respiração.


Dividindo a maioria das opiniões, Anticristo deixa um rastro arrasador, independente da aceitação do filme. Se você gosta, se torna um apreciador imagético e sensato da obra de Von Trier, se não gosta, a experiência foi realmente dura. Filme forte, trágico, que necessita de uma boa dose de estômago e concentração pra ser levado. Aliás, ser levado pelo filme é o grande trunfo de Von Trier, que consegue construir um ritmo essencial à colaboração do espectador, já que a história, se não fosse o diretor, seria facilmente abandonada por quem assiste: a loucura não tem limite.

O filme é dividido em quatro capítulos, um prólogo e um epílogo. Logo de cara, Von Trier nos apresenta uma cena compatível ao seu brilhantismo. Em preto e branco, o prólogo de Von Trier dá margem aos acontecimentos que vão seguir o trágico início. Numa câmera lenta excepcional, o diretor coloca o casal protagonista, interpretado por Charlotte Gainsbourg (Palma de Ouro de Melhor Atriz em Cannes pelo papel) e Willem Dafoe, numa cena de sexo explícito, enquanto isso, o filho, ainda muito bebê, sai do berço, abre a janela e se joga do prédio (sim, crianças se suicidam). Como é do feitio de Von Trier, o momento da morte do bebê coincide exatamente com ápice do orgasmo da mulher, colocando em oposição o lado vítima e o lado culpada que se chocaram durante toda a película.


A todo o momento, Von Trier coloca as coisas em oposição, hora aproximando, hora igualando. Na medida em que a vida das personagens vai perdendo a cor, com o caos se instalando fervorosamente no cotidiano, o filme, ao contrário, vai ganhando uma fórmula imagética que plastifica todo o sentimento, a dor e as questões que envolvem a obra. A fotografia, belissimamente sincera, liga os pontos da dor e da realidade, movendo o espectador a uma proliferação de sensações até então inimagináveis. Descobrimo-nos sádicos, dramáticos, crentes e animais. Os animais é outro ponto chave dessa história, já que a raposa, o corvo, o lobo e o cervo dão o tom animalesco ao personagem de Willem Dafoe, incutindo a ideia de que a sua ciência (perdedora) e seu propósito (egoísta) não surtem efeito graças a sua semelhança com as coisas mundanas. O ar que tu respiras, o que comes e o que vestes não te faz diferente de nenhum ser. E aí que entra a ideia maior de Von Trier, diminuir o ser humano a sua mais temida face: o animal.


A floresta, ironicamente chamada de Éden, colocará os personagens frente a eles mesmos, ao nojo interno de si e do outro, a ligação entre dor e passagem, dor e momento. O Homem encontra sua pior face e tenta destruí-la, infligir dor, matar todas as suas células que possam dar uma posição saudável, de vida. E, acredite, essa dor não é sentida pela mãe, a perda do filho é a válvula de escape para o encontro do seu ser com a natureza, aquela que vai torturar, manipular e matar.

O trabalho dos atores é realmente sensacional. Os personagens não perdem nada em relação à complexidade de seus caminhos. O marido, que hora misógino, tentador do controle sobre a mulher, traça sabidos momentos de tortura sobre as feridas do lado mãe, como o sexo quando entra como fator de liberação dos sentimentos, enquanto ela, enlouquecida, só vê na satisfação da culpa o caminho da glória final. Deus pode não ter nada a ver com a história... ou ter tudo a ver com ela.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Strawberry Fields Para Sempre (Crítica: Educação / 2009)

“Mais cedo ou mais tarde, a teoria sempre acaba assassinada pela experiência.” (Albert Einstein)


Caminhos servem para serem trilhados. Escolhas são, mais do que fruto de devaneios, caminhos a serem trilhados. Quem passa incólume pelas escolhas, dificilmente cria experiência. Quem nega caminhos, improvavelmente lembra-se da vida que levou. Experiência é, inegavelmente, fruto dos nossos erros. Às vezes, e na maioria delas, traz sofrimento, culpa, arrependimento.

Educação (An Education, Inglaterra. 2009), dirigido pela dinamarquesa Lone Scherfig (recém-saída do Dogma 95, o mesmo que Lars Von Trier ajudou a criar), promove uma semi-discussão sobre as escolhas da vida e como elas podem afetar na construção moral de um ser humano. Através da contraposição entre educação, essa que é ensinada dentro de escolas, e experiência, adquirida da vivência humana, o longa espreme no espectador uma experiência catastrófica para uma menina de 16 anos no início da década de 1960.


Muitos dizem que o longa não insere nada de novo a esse tipo de discussão, já que o tema vem sendo pormenorizado pelo Cinema há muitos anos. Mas, é clara a diferença que existe entre esse filme e os tantos outros que se propuseram a discutir o papel feminino na década que iria revolucionar a vida da mulher dentro de uma sociedade, até então, machista. Essa diferença não reside só em preparações técnicas de cinema de primeira, como o exuberante figurino e a estonteante fotografia, mas também por se tratar do melhor roteiro de um dos grandes escritores das últimas décadas, Nick Hornby, o mesmo de Alta Fidelidade (2000) e Um Grande Garoto (2002). Dessa vez, Hornby adapta das memórias da jornalista inglesa Lynn Harber, um roteiro direto, pleno e, sem dúvida, sua melhor parceria com a sétima arte.

Jenny (Carey Mulligan, sensacional) é a menina de 16 anos que ficará indecisa entre dois distintos modos de vida. O primeiro trata-se da educação, mais pura e gradual que pode existir. Seu pai, interpretado pelo sempre competente Alfred Molina, impõe sobre a garota uma educação rígida, em que Jenny tem que ter as melhores notas da sala, para tentar pleitear uma vaga em Oxford, o lugar que Jenny enxerga como ideal. O segundo, vem na forma um homem mais velho, David, que ganha vida através do talento sempre esnobado de Peter Sarsgaard.


Vale lembrar que o pai de Jenny, apesar de ser muito rigoroso quanto aos estudos da filha, nunca impediu que ela fizesse nada, tanto é que quando a jovem conhece David, os pais de Jenny logo se encantam pela majestosa presença do rapaz. David chega na vida de Jenny como a promessa de uma vida diferente da qual ela levaria, caso continuasse se dedicando fervorosamente aos estudos, já que em nenhum momento ele é dispensado, apenas é tratado com menos importância, conforme a menina vai se rendendo aos encantos de David, ou melhor, aos encantos da vida que David lhe proporciona.

David é o desejável bon vivant. Dono de uma cultura extensa, que vai desde conhecimento da Antiguidade Clássica até o ainda desconhecido rock "yeah yeah yeah", mais tarde traduzido pelos Beatles, frequentador de cafés famosos, restaurantes caros e teatros particulares, David vai conquistando Jenny sem nenhum esforço. A menina que já era fascinada pela cultura francesa, por música clássica, por roupas finas, se rende a essa explosão atômica que passa a dar rumo a sua vida. Os estudos estão cada vez mais esquecidos, só a presença, sem nenhuma ideia construtiva, vai concretizando a vida acadêmica de Jenny. A educação passa a ser um investimento a longo prazo, enquanto um homem rico pode surpreender suas espectativas quanto a vida.


É certo que alguns atores foram muito mal aproveitados nessa película, como é o caso da veterana Emma Thompson, que surge como a diretora da escola que Jenny estuda. Ameaçando uma singela revolução aos costumes dentro da escola, Jenny encontra na diretora um empecilho feroz ao abandono da educação como prioridade da vida da mulher inglesa. O filme ainda traz Dominic Cooper e Rosamund Pike como os amigos de David que ajudarão Jenny na abdução ao novo estilo de vida.

É notável a mão leve da diretora ao traduzir uma história que podia cair facilmente no melodramático. Ao contrário disso, a diretora impõe um ritmo próprio ao longa, impedindo que a história fique tão blasé, como tem nomeou a crítica especializa na época de estreia do filme. Mesmo sendo reconhecido com várias indicações a diversos prêmios, inclusive o Oscar de Melhor Filme, a crítica insiste em diminuir a obra sem nenhum por que. O filme tem sim seus méritos e muito grandes por sinal, como é o caso do trabalho espetacular dos atores.


A novata (na época) Carey Mulligan impressionou o mundo com o retrato forte e inteligente dessa garota, que mesmo aliada a uma educação nata, deixou-se levar pela lábia fina de um homem culto. E aqui se encontra os dois lados da educação primorosa: enganar e ensinar. Mulligan, que foi indicada ao Oscar de Melhor Atriz e perdeu injustamente para Sandra Bullock naquele ano, é considerada, hoje, uma das atrizes mais promissoras do mundo, já que está envolvida em grandes trabalhos, com grandes atores e grandes diretores. Peter Sarsgaard não fica atrás, e a cada papel mostra mais um pouco de seu talento, que até agora custa a ser reconhecido pelas grandes premiações.

Os limites de bom senso da personagem parecem todo tempo transponíveis, é como se o preço de ser enganada valesse diante da vivência que ela se entregava. O final, embora um pouco previsível, reflete bastante essa segurança que a personagem de Carey parecia passar a cada cena, a cada diálogo, apesar de tudo ela sabia seu fim e o desejava, talvez como uma nova versão de uma feminista. Outro grande suporte das emoções dos personagens está na fotografia, que encontrou nas cores cruas uma solidez causticante ao produto final, permitindo uma dose infinita de paixão e crueldade aos atos impensáveis dessas criaturas humanas.


A direção de arte do filme também é outro espetáculo a parte, que junto com o elenco magistral, promove uma experiência no mínimo reflexiva ao espectador. Acho muito cruel rebaixar Educação ao posto de grande vilão da inteligência humana. Não é todo mundo que planta cinema, às vezes, essa pode ser a primeira experiência de um espectador quanto ao tema. Por isso, deve sim, ser respeitado e divulgado como uma obra memorável.