terça-feira, 17 de setembro de 2013

Corpo Fechado (Leitura: A Professora de Piano / 2001)

O austríaco Michael Haneke se especializou no discurso psicológico da violência que habita os lugares mais obscuros da vertente humana. Em Violência Gratuita (1997) desceu aos porões de sua mente ao colocar em discussão a propensão à crueldade e á tortura, tão desprezadas no Homem, mas que tem espaço vivo quando estimuladas por algum fator externo. Aqui, em A Professora de Piano (La Pianiste, 2001, França/Áustria), Haneke quer simbolizar a degradante descida de uma mulher de meia idade aos limbos dos próprios desejos, tendo o sexo como pano de fundo (desculpe, cortina de frente) no processo de humilhação e afloramento de sua personagem-título.

Engana-se muito quem pensa que o diretor possa falhar com a sensibilidade em suas obras, pelo contrário, Haneke consegue discutir profundamente temas tabus sem que o choque seja o principal sentimento difundido durante a projeção. Não sei bem ao que isso se deve, talvez ao uso quase que hipnótico do silêncio, tão presente em seus filmes, ou a liquidez das conquistas humanas, que rapidamente se rendem à melancolia ou são surpreendidas por tragédias homéricas. De longe, mas correndo com força, surge a capacidade inabalável que o diretor tem de impressionar o espectador, atingindo diretamente nesses nossos lados secretos, absolutamente invioláveis.


O filme segue os passos de Érika Kohut (Isabelle Huppert, gélida e sensacional), professora de piano numa escola de certo renome. Érika é extremamente rígida com seus alunos e, de fato, não é uma rigidez que busca o melhor da outra pessoa, é quase que gratuita sua maneira nazista de lidar com os outros, principalmente no método de ensino, desprovido de elogios ou qualquer tipo de motivação. Parece que em algum momento aquela mulher se frustrou na sua caminhada de quase meio século, não conseguiu ser a musicista que sonhou e foi assolada pelo medo de sair e viver.

Em casa, Érika vive uma situação tão massacrante quanto sua vontade de se encontrar (é nisso que o filme se baseia: na liberdade de ser quem e o que for). A primeira cena do filme coloca Érika e a mãe (Annie Girardot), já idosa, num combate de solicitudes, onde a agressão física e moral é parte essencial daquela relação doentia entre mãe e filha. Infantil em quase todas as questões que não envolvem sua especialidade, a música, Érika se mantém refém da mãe, dorme na mesma cama que a genitora e não tem nenhum tipo de sinal para se abrir para uma vida privada.

Érika, então, encarna o espírito da mulher possessiva, sem limites e, de certa forma, corroída pela loucura. Quer sexo, quer conhecer-se sexualmente, mas não abre brecha pra isso, prefere frequentar clubes de pornografia e ser voyeur não assumida de transas de casais desconhecidos. Assim, a personagem explora toda sua política sexual, seu senso de prazer e tesão, caminhando para a tal liquidez em que seus desejos e verdades se afundarão.


O jogo começa a mudar para Érika quando ela conhece seu mais novo aluno, o jovem Walter, interpretado com bastante segurança pelo premiado Benoit Magimel. Logo de cara, o jovem se atrai pela mulher bem mais velha e, por tudo que o move, tenta conquistá-la, pelo menos, tê-la sexualmente num mergulho apaixonante, realmente guiado por paixão e desejo. A princípio, Érika o rejeita e, sobretudo, coloca Walter em seu devido lugar, mas aos poucos vai demonstrando toda sua fragilidade e curiosidade acerca de um relacionamento amoroso, sexual. Não, a personagem não irá se redimir. Após muito ignorá-lo, Erika começa a finalmente aparecer para Walter: obcecada, carente, violenta, dura, impossível de sentir dor ou alegria, movida por um instinto muito maior que seu bom senso, totalmente descaracterizada da realidade amorosa. A relação de professora-aluno dá lugar a uma relação inóspita, onde ninguém consegue sobreviver, agressor versus vítima (que de minuto em minuto vão se alternando entre Érika e Walter) se enfrentam sexualmente, verbalmente e idealisticamente até o fim do filme, que, na cena final, coloca Érika, em sufocante desespero emocional, frente a uma solução pouco provável: saciar uma dor com outra dor ainda mais intensa.


Huppert é uma atriz completa, já trabalhou com os mais incríveis diretores do mundo, entre eles Claude Chabrol, um dos principais responsáveis pela absorção técnica e corajosa que a atriz foi fazendo em cada papel que representou. Sua conduta robótica, encontrada no gelo, esconde do espectador aquilo que é extremamente visível no seu andar, na sua sensibilidade de se mover e encarar a câmera: o adversário natural.

Haneke faz um filme forte, impactante até o último minuto, improvável até que alguém diga o contrário. E ele mesmo diz.

quarta-feira, 8 de maio de 2013

Lateralidade (Crítica: Despedida em Las Vegas / 1995)



Não se sabe muito bem qual o momento de dar fim a alguma coisa. Simples. Em qualquer tipo de situação prazerosa o fim é sempre a pior parte. O término de um relacionamento de marido e de pai, o esquecimento de um ciclo coletivo e valorizado e os prazeres dos vícios mundanos são temas abordados pelo eficiente Despedida em Las Vegas (1995), filme do duvidoso diretor Mike Figgis.

A obra anda sobre cacos afiados, todos pertencentes a vida de John O"Brien, que se suicidou dois meses depois de lançar o livro em que se baseou o filme. Trata-se de uma projeção que sangra todos os percalços da vida desse homem alcoólatra, abandonado em suas convicções e sonhos. A fidelidade às folhas é emocionante, mesmo que melancólica, induz a um sentimento prioritário a qualquer ser humano: solidariedade. Nessa obra, então, somos levados a vida de dois sócios de uma vida miserável, necessitados do carinho do mundo, mas jogados cada vez mais em direção ao abismo da solidão e da morte.

Ben, personagem de Nicolas Cage, é o sujeito quebrado que vai levantar as pautas produzidas por O'Brien e, mais tarde, por Figgis. Um homem sem emprego, jogado pela mulher e esquecido pelo filho, e que, para somar como argumento, tem um vício terrível no álcool, atropelado pela sua condição. De forma mais simples, o indivíduo é um beberrão abandonado pelas pessoas mais importantes de sua vida. Não pense, assim, que Ben possa ser uma personagem superficial, pelo contrário, o roteiro é tão rico que a figura desse homem cresce assombrosamente, focando numa fragilidade plena no semblante de Cage, estourando um balão de melancolia que arrasta toda nossa atenção para o trabalho de atuação, de fato, a ser aplaudido.



Quando Ben decide se mudar para Las Vegas e lá beber até morrer, seu mundo vira de cabeça para baixo. Ele conhece Sera (Elizabeth Shue, exuberante), uma prostituta que se apaixona por Ben e compõe a atmosfera mortal que acompanha os personagens. Sera surge para tornar nítida a situação precária em que Ben se afunda cada dia um pouco mais, e será, até o fim, a mão amiga que levará o cara até a beira do precipício. Se existe tentativa de controlar a fúria de Nicolas Cage, Elizabeth Shue devolve tudo com flores mortas. Sua situação também não é forte o bastante para salvar Ben, mesmo que ela o entenda, seu único artifício é ser companhia de um homem rejeitado.

Nicolas Cage poderia ter uma carreira brilhante e invejável. Começou bem. Ainda muito novo, recebeu essa indicação ao Oscar, saiu vencedor e louvado do Kodak Theatre; era o próximo-homem do Cinema. Seu talento deixou o mundo espantado. A caracterização perfeita do sujeito alcoólatra que anda aos tropicões em busca de morte, e que seja, enfim, a vida; a transição da mente sóbria para a aura fantasiosa e de novo para a sobriedade, culminando na depressão; faces de um mergulho existencial do ator em busca da verdade. Extremamente detalhista, Cage realmente impressiona em cena. Da fragilidade, aparente na cena em que, no meio do sexo oral, pede que Sera pare e volte a conversar com ela, demonstrando profunda habilidade do ator, ao ter que migrar da glória ao prazer (estimulado por drogas), para a sutil percepção humana, até a infantilidade e agressividade habituais em pessoas alcoólatras.

Cru e vazio, Nicolas Cage levou muito a sério o perfil do homem inconsequente, brincalhão. Talvez, hoje, esteja perdido no mundo e nas ideias como Ben estava. Diferentemente, em Ben ainda havia uma consciência forte de seu estado, da sua falta de relevância.

sábado, 4 de maio de 2013

O Olho que tudo vê (Crítica: Perfume de Mulher / 1992)



Al Pacino já era um ator consagrado quando finalmente recebeu seu primeiro e único Oscar. Alguns de seus filmes se tornaram clássicos dentro da história do cinema e, claro, que muito disso vem da presença do ator. Quem não se lembra, por exemplo, da magnífica interpretação de Pacino em Um Dia de Cão (1975), do vigor de sua arte em Serpico (1973), ou da extrema entrega de Scarface (1983)? A verdade é que nessa incrível carreira tem filme bom que não acaba mais. E não é pretensão citá-los, é fato. A trilogia O Poderoso Chefão, Donnie Brasco, O Pagamento Final e mais uma série de outros títulos sugerem uma trajetória estelar, de muito reconhecimento e de continuidade inegável. Atualmente, Al Pacino resolveu brincar de fazer cinema. Brinca tanto a ponto da dúvida pairar sob sua figura. Quem se propõe a conhecer Al Pacino como ator dos anos 2000 terá poucas surpresas boas. Então, sugiro que volte no tempo e conheça o monstro que habita a alma desse ator.

Perfume de Mulher (1992) respira ares de Al Pacino. Se imaginar o filme sem o ator, fica difícil acreditar que o resultado pudesse ser o mesmo ou até mesmo levemente parecido. A criação de um personagem consumido por padrões e preconceitos, que ele mesmo lança e que também o atingem, deram a chance que Al Pacino buscou a vida toda: uma interpretação complexa e emocionante. Sim, mil personagens com as mesmas características passaram pela vida do ator, mas nenhum com a carga de vida e experiência contida em seu cerne como o tenente-coronel cego Frank Slade, o dual e notável personagem de Al Pacino.

A cegueira é o maior empecilho na vida de Frank, óbvio, e no feriado de Ação de Graças junto de uma espécie de cuidador, interpretado por Chris O'Donnell, resolve fazer uma viagem a Nova York, onde vai desfrutar dos maiores prazeres da vida, segundo ele, antes de cometer suicídio. Frank permanece recluso, morando nos fundos da casa de uma parente. As pessoas que se aproximam dele possuem sérias dificuldades em manter convivência, seja pela falta de empatia suplantada pela arrogância do militar ou até mesmo pelo estilo de vida extremamente reservada, contida em ambientes escuros, frios e carregados de sentimento de impotência.

A viagem até Nova York, o recheio desse bolo, implica na visualização real da personagem de Al Pacino. Aquele homem recluso e deprimido se revela, então, um sonhador. Aquele tango fascinante, em que o ator desfila todo seu charme e talento, é um exemplo digno de uma vida deixada para trás, de um sentimento pedindo olhos, bocas e poros abertos. Dá-se, então, a explosão na atuação de Pacino.

O'Donnell até tenta dividir o protagonismo do filme com o veterano, mas a tarefa se traduz numa impossibilidade catastrófica, pontuando um filme não tão bem-sucedido no seu final, lançando inúmeros clichês e sensações já vividas, já vistas. Mas Al Pacino é gênio. A magia de seu trabalho resplandece aos olhos de qualquer um, mesmo no seu olhar vazio e que nada vê, mas que encanta e supera milhões de finais felizes.

domingo, 21 de abril de 2013

A Vida em Telas (Crítica: Frida / 2002)

"Diego, houve dois grandes acidentes na minha vida: o bonde e você. Você sem dúvida foi o pior deles."



Se entrasse numa tela, a vida de Frida Kahlo não seria tão superlativa como se pode imaginar. Não é questão de ser nem de ter, é só uma constatação humana. A pintora mexicana viveu uma vida bem simples no que se pode traduzir nos dias de hoje, viveu como quis, mas apenas vivendo. Há quem pensa que o vendaval que foi Kahlo depende muito de uma vida insana, regada à droga e bebida ou, até mesmo, assombrada por amantes autoritários, mulheres com tendências apaixonantes e quadros de peso crucial para uma personalidade desconcertante. Frida foi uma mulher em cem mil. A prova de sua humanidade está na sua arte, na sua liberdade.

Frida (EUA, 2003), filme da diretora Julie Taymor, brilha exatamente no seu propósito libertário, contar aos “trancos e barrancos” a vida solar de uma mulher que enfrentou questões póstumas, momentos violentos e como transferiu a tragédia e a simplicidade para seu trabalho. Quem planta pecado não colherá Deus e Frida somente sonhou em com o viver. No papel da pintora está a também mexicana Salma Hayek, que também entrou como produtora da obra. Salma é indiscutível na sua representação de Kahlo, a atriz tem em seu cerne a admiração pela artista, é algo que acontece em poucos encontros, talvez o mais visível a curto passado seja a performance assombrosa de Marion Cotillard como Edith Piaf. O fato de existir um sentimento nacional entre uma artista viva e outra morta é palpável e quase olfativo nesses filmes biográficos. São performances catastróficas dentro do próprio caos. Talvez entenda assim o que é sentir a liberdade através da tela.



Lá pelas tantas de sua vida, Frida Kahlo protestou vivência, conquistou seus contrários e foi montando um sensacional roteiro de vida, isso torna o filme tão interessante, tornando desnecessária uma postura avaliativa. Seu princípio é conquistar sem ao menos te forçar a nada. Frida faz isso sozinha.

Com a dor crescendo a olhos nus, a perseguição da essência de Kahlo é, de fato, um senso e uma direção tomada por todos os profissionais do filme. Alguns pensam e veem uma mistificação em torno da figura da pintora, mas não, é só uma obra pronta pra declarar a relação social e humana da arte e do sofrimento, da liberdade e da lágrima. Aqui, Kahlo está onde deveria estar, sem estrelismos, apenas conquistando, causando reconhecimento.

O relacionamento com o artista Diego Rivera também é abordado dentro da perspectiva cinematográfica, somando mais humanidade as contradições (ainda assim, normais) de Frida Kahlo, entenda que seus problemas só estavam visíveis a outros olhos humanos.



Movimentista, louca, conquistadora, pataquada, egocêntrica, e muitas outras características foram aplicadas na personagem real. O que é verdade? Não sei. A percepção da mão hollywoodiana fica naquele singelíssimo bigode ostentado por Salma Hayek, quando, na realidade, todo mundo que conhece Kahlo sabe que ali existia um vasto bigode. Rivera (interpretado pelo ótimo Alfred Molina) também parece mais plausível na sua arte do que na representação do cinema, alguns o acusavam de terrores com Frida.

Fica parecendo, então, ou enfim, que uma vida continua em cores, em saltos e aos montes.

quinta-feira, 4 de abril de 2013

De Criança para Crianças (Crítica: Moonrise Kingdom / 2012)

"Os homens temem a morte, como as crianças temem a escuridão."



Sabe-se lá a causa que move Wes Anderson na hora de produzir um filme. Afeito a maneirismos muito característicos, onde tudo é extremamente calculado, como a tão habitual câmera em movimento, que surpreende tanto o espectador em momentos oportunos, mas inesperados; a fotografia excêntrica; a "dramédia" comumente relatada em seus dias de labuta, Anderson entrega em Moonrise Kingdom (EUA,2012) seu trabalho mais completo, onde pela primeira vez tudo se encaixa e faz todo o sentido para quem consome essa verdadeira obra de arte.

Reencontrando antigos amigos, pouco a pouco, Anderson foi realizando Moonrise Kingdom. Primeiro escreveu o roteiro em parceria com o amigo Roman Coppola, depois convidou seu fiel escudeiro Bill Murray e, a partir daí, foi definindo um elenco de peso para participar da película. Frances McDormand, Tilda Swinton, Edward Norton e Bruce Willis são alguns dos nomes que pesam na produção do filme, ainda mais nesse caso, quando esses atores vão servir de suporte para contar a história de dois pré-adolescentes sedentos por liberdade.



Wes Anderson vai até 1965, numa ilha isolada na Nova Inglaterra, para contar essa história recheada de fantasia, saudosismo e aventura possível. Numa casa, morando com os pais (Murray e McDormand), está Suzy Bishop (Kara Hayward), uma menina de 12 anos, culta e vaidosa, insatisfeita com a rotina e com o pouco caso do pai. A mãe de Suzy, que sme querer alimenta uma barreira entre ela e a filha, também não é espelho para a menina, já que está mantém um caso com o único policial da ilha, interpretado por Bruce Willis. Na outra extremidade desse cubículo terrestre está Sam (Jared Gilman), escoteiro da equipe do comandante Ward (Norton), adotado e rejeitado pelo amigos. A rejeição, segundo os sentimentos de Sam, parece vir de sua engenhosidade, que aos poucos pode lhe atribuir características de insanidade.

Quando Sam e Suzy começam a se corresponder, logo de cara já nasce um sentimento de confiança mútua, tão inexistente no meio em que eles sobrevivem, despistando maiores questionamentos de pais, tutores ou meros colegas de barraca no acampamento. Como um bote salva-vidas um se agarra ao outro e imediatamente precisam um do outro para ser feliz, tentar ser quem realmente são. Num dia qualquer, as crianças resolvem fugir, viver uma aventura e construir uma breve história juntos. A questão que doma o espectador é justamente no que se transforma esse roteiro de Coppola e Anderson, totalmente livre de clichês e cortes tendenciosos a pieguices. Não. O direcionamento é mais humano, mas sem tirar o olhar inocente e revolucionário de uma criança apaixonada. A fuga de Suzy e Sam vai gerar um verdadeiro caos dentro da ilha, incluindo um encontro entre os pais de Suzy, o policial galanteador, o escoteiro-chefe atrapalhado e uma desinformada assistente social (Swinton), todos em busca de destruir algo que nem se atrevem a mensurar.



Como eu li numa crítica de um amigo, é muito difícil encaixar Moonrise Kingdom num gênero, principalmente pela máscara que Anderson consegue botar nos seus trabalhos. Por exemplo, nessa obra sobra espaço para a comédia, para o drama, para a crítica social, para o apelo mercadológico, entre outras coisas. Porém, Moonrise Kingdom ganha por não pecar nos excessos. O humor é dotado de uma simplicidade genuína; o drama tem uma melancolia doce, recheada de boas memórias; a crítica se perde no rosto dos protagonistas (embora seja perfeitamente entendida), mas como é um mundo de aventuras infantis, a troca de personalidade entre crianças e adultos ainda soa como parte de uma história e não da realidade. E aqui entra o ponto mais perverso de Moonrise Kigdom: infelizmente a realidade é suplantada pelos próprios personagens centrais, que observam a fuga imaginária como a principal forma de respirar novos ares e de doação de ambos. Anderson cria uma fábula cheia de casinhas, castelos, vilões, pontes, riachos, todos se unindo contra a precisão de uma paixonite aguda.



Com essa obra, Wes Anderson chega ao respeitável posto de "cineasta compreendido". Depois de Moonrise Kingdom, fica impossível ignorá-lo novamente. Sua arte e seu modo de ver e fazer cinema entram definitivamente para a rota dos memoráveis, imperdíveis e inexplicáveis sonhos.

sexta-feira, 22 de março de 2013

Questão de Ser (Crítica: O Lado Bom da Vida / 2012)

"As maiores loucuras são as mais sensatas alegrias, pois tudo que fizermos hoje ficará na memória daqueles que um dia sonharão em ser como nós: Loucos, porém, FELIZES!"
Kurt Cobain



Não é todo dia que conseguimos encontrar um projeto com tanta gente bacana envolvida. Um diretor promissor, que caminha a passos largos para um futuro Oscar, um galã divertidíssimo, uma menina em estado de graça e dois veteranos de peso se juntam na maravilha que O Lado Bom da Vida (Silver Linings Playbook, EUA. 2012) tinha tudo para ser. De fato, o filme de David O. Russel tem um pé atolado na mesmice, mas o quarteto de atores é tão genuinamente bom, que a outra perna da obra se cobre de joias brilhantes. Contudo, se o resultado final basicamente se traduz como um filme de atores, algumas das outras indicações ao Oscar parecem exageradas, enfiadas goela abaixo.

Indicado a incríveis 8 categorias do Oscar, O Lado Bom da Vida foi conquistando tímidos corações ao redor da Terra, dialogando tête-à-tête com cada um dos seus espectadores, que fascinados pela beleza e força dos atores, juntaram-se a um imenso conglomerado de fervorosos fãs do filme e da atriz Jennifer Lawrence, uma das protagonistas da obra.



O. Russel é um diretor realmente muito profundo, coerente com seus personagens e roteiro, sem contar que produz monstruosas personificações com um simples tatibitate no pé do ouvido de seus atores. Em O Vencedor (2010), a maior prova de seu talento, David O. Russel levou uma legião de mentes duvidosas ao chão dirigindo Christian Bale, Amy Adams e Melissa Leo. Aqui não é diferente, O. Russel tira o sangue do quarteto nessa edificante história sobre amor, loucura e confiança. Embora pareça que a carreira do diretor transite em círculos ( e o próprio texto siga essa tendência), seu maior legado tem sido a direção de atores, absolutamente inquestionável.

A trama, que também tem roteiro escrito pelo diretor, segue os passos de Pat Solitano (Bradley Cooper, em louvável caracterização), professor bipolar que, após flagrar a esposa com o amante e quase matá-lo, é internado numa clínica de recuperação. O personagem de Cooper revela-se um sujeito realmente adoentado na pela própria condição mental, que ressurge em crises homéricas na hora dos questionamentos de mérito tão superficial ou simplesmente a partir de uma lembrança profundamente perturbadora. O problema de Pat é não reparar que o que lhe causa malefícios é justamente o que ele persegue.

Após voltar para casa dos pais, interpretados por Jacki Weaver e Robert DeNiro (como há muito tempo não víamos, enchendo a cena), Pat conhece a depressiva Tiffany (Lawrence), que logo de cara se joga nas costas do sujeito. Tiffany perdeu o marido ainda muito jovem, mora no fundo da casa dos pais e se relaciona com todo tipo de homem, na esperança de se preencher finalmente. Quando as duas figuras trocam o primeiro olhar percebemos diferentes reações. Enquanto Pat vê apenas mais uma garota problemática, que pode dificultar sua reaproximação com a esposa, Tiffany se lança numa jornada de interesse próprio para redescobrir seu mundo. Isso, de fato, parece cair por terra no primeiro segundo, principalmente depois que Pat vê na garota uma potencial mediadora entre ele e a ex-esposa, e Tiffany o vê como seu parceiro num concurso de dança.



Se por um lado o diretor desvenda seus personagens com o auxílio de um texto resplandecente, reproduzindo fantásticos diálogos entre seus personagens; do outro, O. Russel começa a levar todo seu trabalho para um caminho de fácil percepção, onde surpresas são esquecidas e o caminho do "já vi isso antes" vai se tornando cada vez mais certo. Não há o que dizer da evolução das personas do texto, Pat e Tiffany são apaixonantes, mesmo na simpática insanidade que exala dos poros de Lawrence e Cooper, ou, até mesmo, quando vemos a relação de interesse se transformar num pulmão cheio de ar, vislumbrando o fim de anos enclausurados em suas respectivas mentes doentias. Encontrar a si mesmo e concretizar seu eu no mundo é a máxima de O Lado Bom da Vida, que vai juntando dança, futebol americano, pais com transtornos obsessivos, amigos com olhares de desconfiança e muita gente maluca num produto só. Recuperar a confiança em si mesmo e redescobrir esse lado bom da vida, mesmo que o resto do mundo desabe, será o desafio aceito por Pat e Tiffany.



Não é de hoje que eu digo que Jennifer Lawrence já é a nossa nova Meryl Streep, principalmente pela conciliação de grandes projetos envolvendo muito dinheiro com a suprema habilidade de estar extremamente envolvente em filmes menos visados. Depois do assombro em Inverno da Alma (2010), Lawrence conseguiu sua segunda indicação ao Oscar com a prolixa Tiffany, dessa vez saindo vitoriosa do Kodak Theatre.

PS: Se Emmanuelle Riva era, de fato, a grande atuação do ano, quem me explica esse Oscar de Melhor Atriz para Jennifer Lawrence? Seria Harvey Weinsten, o poderoso produtor por trás das grandes premiações? Ou seria apenas uma marmelada sem sentido? Talvez, um acesso de loucura ou simplesmente uma injustiça? Não sei, mas mesmo que tenha sido um prêmio infeliz, O Lado Bom da Vida explica minuciosamente qual é o encanto que Jennifer Lawrence emana. E que encanto.

sábado, 16 de março de 2013

Meio de vida (Crítica: Indomável Sonhadora / 2012)

"E com isso cortei também a minha força. Ouça: respeite mesmo o que é ruim em você, sobretudo o que imagina que é ruim em você - não copie uma pessoa ideal, copie você mesma - é esse seu único meio de viver (...)
Pegue para você o que lhe pertence, e o que lhe pertence é tudo o que sua vida exige (...)
Gostaria mesmo que você me visse e assistisse minha vida sem eu saber. Ver o que pode suceder quando se pactua com a comodidade da alma".

Clarice Lispector



Se existe uma coisa que os filmes indicados ao Oscar 2013 realmente não conseguiram foi unanimidade, e aqui eu quero dizer, claro, que nem algo próximo a isso foi visto. Pudemos ver, por exemplo, Os Miseráveis agradar muita gente e, ao mesmo tempo, ser regurgitado por outra grande parcela dos espectadores. Prova disso é que o mesmo aconteceu com Lincoln, As Aventuras de Pi, Argo (talvez o mais próximo do caloroso abraço do público), O Lado Bom da Vida, A Hora Mais Escura e o próprio Indomável Sonhadora - acho que Amor é o único que não entra nessas estatísticas um tanto improvisadas.

Indomável Sonhadora (Beasts of the Southern Wild, EUA. 2012) mergulha num universo de magia e instintos humanos, tornando-se severamente contemplativo, daí, talvez, venha a sua condição de não agradar a todos: o filme em nenhum momento é auto-explicativo, pelo contrário, exige do público comprometimento e um coração sensível pronto para navegar na precária zona de mangue de Nova Orleans, onde se passa a história da roteirista Lucy Alibar e do diretor Benh Zeitlin.

A fita se passa num lugar denominado "A Banheira", uma ilha no meio de uma barragem, que após a passagem do furacão Katrina fica totalmente inundada e praticamente inabitável. Nesse lugar, cresce de forma instintiva a pequena Hushpuppy (Quvenzhané Wallis). Embora a menina viva com o pai (Dwight Henry), este não se mostra um perfeito educador, delegando a filha mais força e garra do que uma criança na idade dela deveria ter. O ponto alto e central do filme fica mesmo na relação de interdependência entre a menina e o pai, que arrasado numa doença silenciosa, desconstrói a imagem do pai protetor visando o crescimento do instinto de sobrevivência da filha.



Zeitlin responde de forma muito bela em seu primeiro longa. A fotografia iluminada preenche o mundo fantástico de Hushpuppy, a trilha sonora é carinhosamente trabalhada na emoção das personagens, sem contar a linda câmera que se movimenta como se lutasse contra um naufrágio, buscando sempre na presença de sua protagonista o suspiro seguinte.

A grande beleza de indomável Sonhadora revela-se na construção conquistadora do mundo de Hushpuppy. A mente que briga animais fantásticos, que fogem de algum dos extremos do planeta para encontrar a menina ali naquele cenário desolador, também é a mente guerreira de uma comunidade toda, que ás margens da sociedade, vai alongando o tempo de vida naquela região perigosa. Hushpuppy é o símbolo de um ideal comum àquelas famílias: Ser do lugar que te pertence. A concretização da figura da menina com símbolo se dá principalmente pela força eloquente do pai, que sem a figura da mãe desaparecida, vai injetando em Hushpuppy os mais diferentes instintos animais, provocando uma agigantamento impressionante da menina, que tem também na narração o seu principal veículo de convencimento do público. Basicamente, quem vê na garotinha a chance de controlar esses instintos de sobrevivência, dá com os burros n'água. Hushpuppy é blindada, uma fusão de inocência e força bruta.



Quvenzhané Wallis, indicada ao Oscar de Melhor Atriz, é uma real força da natureza. A pequena garota de sotaque sulista destacado, gera no espectador momentos de puro desarme, onde as limitações de cada um passam a ser ultrapassadas e a revelação de uma nova pessoa pode acontecer. Wallis preenche a tela com a natureza de sua imagem e interpretação, reserva para sua personagem cada espaço vazio, cada sensação desconfortável, cada nova esperança de dias melhores. Um brinde e muita saúde à menina Wallis.

sábado, 9 de março de 2013

O que eu não vi (Crítica: Argo / 2012)

"Num filme o que importa não é a realidade, mas o que dela possa extrair a imaginação."



Não se abaixa a cabeça para grandes histórias, não se ignora grandes feitos de heroísmo genuíno, bravura inabalável e disposição pioneira. Não esqueceremos dos grandes filmes, dos inesquecíveis diretores, dos inquestionáveis atores. Edificação, comprometimento, inovação, colaboração, interpretação. Afinal, o que faz de um filme um verdadeiro grande filme? Responsabilidade, coerência, emoção, produção, talento, julgamento. Afinal, me diz, o que faz de um filme um verdadeiro grande filme? Desculpem-me a arrogância, se isso puder parecer, mas será que Argo é realmente a obra-prima que muitos estão pintando por aí?

Ben Affleck já comeu o pão que o diabo amassou ao longo de sua carreira. Após um início glorioso, influência de seu Oscar de roteiro por Gênio Indomável, Affleck andou bem perdido pelos becos e vielas do Cinema. Pisou em cacos na carreira de ator, se prevenindo de filmes mais pensantes e sensitivos, mas, ainda sim, permanecia vivo na mente do público. Como não lembrar do horror descabido que foi "Demolidor - O Homem Sem Medo"? Não dá. A carreira de Ben Affleck começou a dar um salto quando, em 2007, filmou o bom "Medo da Verdade", revelando-se um diretor infinitamente mais sensível em relação ao ator mediano que sempre foi. Depois disso, trabalhou no ótimo "Atração Perigosa" para chegar finalmente em 2012 e lançar o filme que definiria sua jovem caminhada.

Argo, acima de tudo, é uma injeção de cupcakes ao espírito nacionalista americano - vide a constrangedora participação de Michelle Obama na premiação do Oscar - que hora ou outra mistifica cada vez mais o "ser" americano no mundo de hoje, abraçando uma causa cívica que, provavelmente, sem querer acaba enaltecendo o modo de vida e a coragem no momento das realizações que só uma pátria e um único povo parece ter.



Sem apelar para o extremismo - nisso Affleck se mostra bastante inteligente na condução da trama- e nem deixar o clímax cair, o roteiro vencedor do Oscar, do talentoso Chris Terrio, revisita um fato histórico, de 1979, que marcou a história de Hollywood e do governo americano, que se juntaram numa invenção gigantesca para resgatar seis refugiados no Irã, que se encontrava em plena revolução contra o sistema político nacional e a intromissão tão característica dos norte-americanos. Tony Mendez (Affleck, péssimo), agente da CIA, é o grande mentor do plano de fuga dos refugiados e, conforme o combinado, finge-se de diretor de Cinema, procurando locações em terras iranianas. O plano estabelecia a cada um dos refugiados um papel nessa fantasiosa produção, tornando quase impossível o descobrimento por parte dos rebeldes, que supostamente acreditariam na farsa.

O filme de Affleck começa muito bem. A narração rápida do começo causa tensão e promete um filme fervoroso, pronto para dar o sangue fictício a história de Tony Mendez. Logo depois, em fantástica habilidade técnica, o filme corta para as cenas de revolução nas ruas de Teerã, capital do Irã, em que os rebeldes ensandecidos, numa língua assustadora, ameaçam invadir a Embaixada dos EUA. O som é incrível, a montagem também beira a perfeição e a trilha sonora se traduz impecável, até que Affleck, o ator, entra em cena.



Apoiado em câmeras estranhas, pouco inspiradas, Affleck começa a filmar a decomposição de todo o roteiro, os truques para colocar o plano em prática, a chegada ao Irã e finalmente a saída do país, com todos os seis refugiados salvos. Algumas das cenas se mostram primárias, os clichês mais bestas são vistos de olhos fechados, como a cena em que o personagem de Affleck fica olhando, com olhos marejados, a felicidade dos "reféns libertados", enquanto esses retribuem com olhar de agradecimento e veneração. Muito infantil. Affleck ainda conta com um Alan Arkin chato e um John Goodman "paquitão" transitando pelo seu filme. De forma geral, o elenco é bastante chato e os personagens montados demais; os diálogos são longos e pouco explicativos e, durante todo o tempo piadas hollywoodianas sem a menor graça vãos endo jogadas ao espectador, exemplo disso é a premissa "argofuckyourself", repetida mais vezes que o necessário por inúmeros personagens. Só pra não deixar passar, Argo é o nome do roteiro do filme-fake. Embora tenhamos um início promissor, o resultado final acaba por se revelar uma verdadeira besteira, totalmente esquecível como a maioria das questões levantadas pelo filme. Se você não for norte-americano, metade dessa história já não deveria ser tão fascinante assim.

Ben Affleck amadureceu? Sim, de forma espantosa. Mas daí até lhe responder com o Oscar de Melhor Filme é um tremendo exagero ufanista, que só não percebeu quem não quis. E ainda teve gente exigindo Oscar de direção, quiça... de atuação.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

A Moça por trás do Céu (Crítica: A Estranha Passageira / 1942)



A prova máxima da influência de Bette Davis no Cinema está em A Estranha Passageira (1942), bem no instante em que a atriz entra em cena. O diretor Irving Rapper usa sua câmera para fazer suspense quanto a presença da atriz em seu filme. Primeiro mostras as mãos, depois faz ela descer um lance de escadas mostrando só a silhueta da atriz, quando, passeando pelo novo mundo daquela personagem, foca, finalmente, no rosto estelar e aflito de Davis.

Charlotte Vale é uma das figuras mais marcantes que Bette Davis interpretou, seja pela eficiência do produto final, que resultou num filme impecável para a época, e também certificado na pele da atriz. "A Estranha Passageira" sofre de um mal comum, o tempo. As relações propostas pelo filme, tanto as relações familiares tão conservadoras e ineficientes do começo dos anos 40, como na atitude libertadora de Charlotte, se encaixam muito bem no tempo em que estão, porém, envelhecem. As formas de persuasão entre membros da mesma família já não são as mesmas, por isso, parece ser um filme muito distante da realidade contemporânea, o que também não deve colocar em cheque todo o trabalho dos envolvidos no filme, mas, infelizmente, o sentimento de busca de identidade daquele mundo fica cutucando o espectador durante toda a projeção.

Davis é a filha controlada pelas vontades e pulso firme da mãe, interpretada com força por Gladys Cooper. Mais do que tentar se libertar das rédeas da mãe, Charlotte procura por uma personalidade própria, o que já é um ponto muito positivo para o filme, descentralizando a figura da mãe, que aparece mais como uma coadjuvante de peso, pronta pra tornar a vida da filha um verdadeiro inferno na Terra. O conceito de epifania esclarece bem o que tenta ser a personagem de Bette Davis: o autoconhecimento, a aparição e a manifestação do que "sou" na verdade. Até lá, Charlotte ainda é vítima da tirania da mãe, que a transforma numa mulher à beira de um ataque de nervos. A insegurança reina no semblante da filha.



Fica difícil saber a idade de Charlotte, presa numa narrativa não-linear que foge dos preceitos da época. Hora com 18 anos, alegre, feliz, pronta para amar, hora com 27, amargurada, afundando na tristeza. A via-crúcis de Charlotte se completa com o aparecimento de uma paixão na viagem de navio rumo ao Rio De Janeiro. As proibições desse amor correspondido levam Charlotte a repensar sua vida, que numa volta triunfal, assume a postura da mulher dominante, dona do próprio nariz, mas que, ainda, tem o abismo diante de seus pés: a mãe.

Mais uma vez, sempre com muito merecimento, Bette Davis teve sua atuação indicada ao Oscar, quando, dessa vez, acabou perdendo para Greer Garson, que na época foi premiada por um trabalho em parceria com William Wyler - o fantástico Mr. Wyler. Na dor, na esperança, na prisão ou na dúvida, onde estiver, repito, Bette Davis estará no único lugar em que deveria estar.

domingo, 24 de fevereiro de 2013

Ligações Perigosas (Crítica: A Carta / 1940)



Bette Davis deve agradecer na eternidade a chance que teve de trabalhar os mais diversos tipos de personalidade que algumas mulheres podem desvendar ao longo de sua vida. De mentirosa a mocinha, de louca a assassina, todos quase sempre sob a batuta de um diretor bastante sensível, pronto pra tirar o sangue da atriz, sem que ela abandone a mais bela das coisas da arte de atuar: a naturalidade. Despe-se de sua vaidade - e, por isso, acho Kate Winslet tão parecida com Davis - com uma força muito natural, mistificando a si própria como uma atriz inabalável e inatingível. Simplesmente, alguns nascem destinados a fazer exatamente aquilo, prova disso é o talento e infinitas oportunidades que Davis encontrou em sua caminhada. Onde quer que ela estivesse, aquele era o único lugar que ela deveria estar.

Em A Carta (1940), segunda parceria da atriz com o diretor William Wyler, novamente temos uma atriz entregue ao papel, consumida pelos mistérios e focada no destino de sua personagem. Fazer o espectador acreditar piamente naquilo que está vendo não é tarefa fácil, mas, como já citado, Bette Davis exala ar fresco, restando como única opção viver o drama que ela vive. Pouquíssimos atores tem esse poder de convencimento, de controle absoluto de cena e dos olhares.

Leslie Crosbie, personagem de Davis em "A Carta", é um prato cheio para a destemida atriz, que habitualmente deita e rola com a história dessa mulher com aspectos duais. Leslie é americana e mora na Ásia com o marido (Herbert Marshall) e, num dia qualquer, após momentos de desespero acaba matando um homem que tentou violentá-la. Com o apoio de marido e do advogado, Leslie alega legítima defesa. O que a mulher não contava era com o aparecimento da viúva em posse de uma carta, revelando uma ligação muito maior entre vítima e suspeito.



O desespero anda de mãos dadas com Leslie, que além de temer que seu segredo seja desvendado, também assume uma postura enigmática quanto ao limiar de todos os problemas. Na verdade, se existe, sobretudo, falhas na condução do filme, provavelmente essa se perde na poderosa presença de Davis, que não deixa mais espaço para outra conclusão. Leslie esbanja comprometimento mesmo nas cenas mais descartáveis, em que a tensão de sua postura simplesmente não cai, pelo contrário, é como alimentar dragões.

A personagem no filme rendeu a quarta indicação oficial de Bette Davis ao Oscar, que, naquele ano, nem ela e nem Katharine Hepburn tiveram chances contra Ginger Rogers, premiada pelo papel em “Kitty Foyle” (1940). Embora não seja dos melhores filmes da carreira da atriz, Bette Davis reúne todos os pré-requisitos para estar em qualquer lista de qualquer prêmio.

Meninas Malvadas (Crítica: Jezebel / 1938)



“Jezebel” (1938) é o primeiro filme de uma respeitável parceria entre a atriz Bette Davis e o diretor William Wyller, que, mais tarde, se alongou com "A Carta" em 1940 e "Pérfida", de 1941 - Davis foi indicada ao Oscar de Melhor Atriz nas três vezes, mas só venceu justamente por “Jezebel”, configurando seu segundo e último Oscar da carreira. Depois de mais de setenta anos, “Jezebel” ainda se segura no posto de "clássico" da cinematografia mundial. Exaustivamente comparado a "...E o Vento Levou", de Victor Fleming, que seria lançado no ano seguinte, 1939, o filme de Wyler tenta transparecer algo mais sutil aos olhos do espectador do que é, na verdade, a obra de Fleming, que usa mais de um acontecimento histórico para pontuar um romance imortal. Em “Jezebel”, o drama de amar é a principal arma do roteiro.

Bette Davis empresta sua impetuosidade a Julie Marsden, senhorita habitante do sul dos EUA em 1852, mais precisamente New Orleans - precedente à Guerra de Secessão, a região ainda era escravagista, conservadora em seus machismos e preconceitos. Num primeiro instante, Julie demonstra força de sobra ao espectador, parece querer contestar velhos hábitos enraizados na cultura regional, como, por exemplo, quando chega a festa de seu noivado com roupa de montaria e que, segundo ela, não haveria um traje mais apropriado para o momento. E aqui entramos no dúbio reflexo que Julie consegue expulsar de si. Miss Marsden é o que se diz ser uma belle do sul: Bonita, rica, com posição social invejada por outras mulheres e desejada discretamente por outros homens. O que Julie tem de força, também tem de egocentrismo. Usa de sua posição para fazer charme, ser lembrada e não mais esquecida.

O drama da personagem de Davis começa quando, pra se vingar do noivo, que não esteve com ela na prova final do vestido de um importante baile da cidade, resolve comparecer ao tal baile num escandaloso vestido vermelho, que naquele meio e naquela época era difundido como impróprio, sendo o vestido branco ideal para as moças virgens. Pres (Henry Fonda), o noivo de Julie, logo toma um susto e por não conseguir manter uma postura forte com relação a noiva, acaba permitindo seu devaneio modista. Quando chega ao baile, em brilhante cena filmada pela inconfundível câmera inovadora de Wyler, Julie passa por momentos de dura repreensão, que sob os olhares contrariados dos convidados, é levada, contra a sua vontade, a uma valsa mortífera e solitária, agora ministrada pelo vingativo Pres, que usa da oportunidade para pôr rédeas na petulância da futura mulher. Saldo final: ainda no alto de sua arrogância, Julie volta para casa inspirada com seu feito, como se seu desejo de enfrentar a sociedade tivesse sido finalmente selado, sem que de alguma forma a envergonhada deveria ser ela. Só que a belle não contava com o adeus de um renovado Pres, que, cansado de penar na mão de Julie, encerra o noivado e decide voltar para o norte do país.

Um ano se passa e Julie, ainda corroída com a separação, está trancada dentro de casa, evitando visitas e outros tantos prazeres dentro das suas possibilidades. A chama da esperança da impossível mulher volta a reacender quando um surto de febre amarela começa a se espalhar pelo centro-sul dos EUA, que junto com a doença promete também o retorno de Pres a New Orleans. Sabendo da volta do homem amado, Julie, então, resolve preparar uma festa. Entretanto, a belle não esperava encontrar Pres e sua nova mulher, Amy, agora finalmente casado. O instante em que a personagem de Bette Davis tem a chance de reconquistar seu homem se confunde também com o momento em que a soberba volta a tomar conta de sua personalidade, evidenciando uma mulher toscamente mimada, capaz de tudo para reavivar o amor de Pres, mas ainda muito imatura na cadência desse sentimento que a torna tão cega.

Bette Davis faz miséria na pele da destemida e estranha heroína de Jezebel. Cenas inteiras sustentadas por olhares contundentes e cheios de significado. Nesse ponto, a atriz já demonstra ir contra os preceitos de atuação da época: os discursos apaixonados encarando o horizonte não têm espaço no trabalho de Davis, que prefere encarar, enfrentar os medos e as angústias da personagem, destilando seu veneno seja em quem for, sobrando até para a única pessoa que a suporta, a própria tia, interpretada por Fay Bainter, vencedora na categoria de coadjuvante e que, por outro filme, também concorreu na categoria principal, perdendo justamente para Davis e sua Julie Marsden.

O paralelo feito entre Jezebel, malévola figura bíblica, e Julie flui naturalmente na tela graças ao roteiro libertador - e ao emprenho de Bette Davis. A mudança de caráter da personagem do final rende uma das mais belas cenas da carreira da atriz, que desolada pela negação do amor de Pres, parte para assistir a morte do ex-noivo e, assim, lucrar com novos sentimentos edificantes que possam suplantar a temida Jezebel, aproximando-a de uma mulher como Amy, cheia de bondade, carinho e a atenção.

domingo, 3 de fevereiro de 2013

Uma Atriz (Crítica: Acusados / 1988)

Jodie Foster, acima de tudo. Algumas coisas são assim, se definem pura e simplesmente por um motivo, te caçam e te atingem pura e simplesmente por um único motivo. Acusados (The Accused, EUA, 1988) é Jodie Foster, acima de tudo, talvez como “Monster – Desejo Assassino” (2003) seja Charlize Theron, acima de tudo. Não é o mesmo que dizer que o filme não tenha qualidade, é apenas dizer que a agulha no palheiro foi encontrada ou que a “vaca” realmente tossiu ou, ainda, que um raio com nome e sobrenome te partiu ao meio. Jodie Foster: a agulha, a “vaca” e o raio.


Sarah Tobias (Foster) é uma garota de classe baixa, típica interiorana norte-americana que bebe, fuma, beija quando está com vontade de beijar, dança quando tem vontade de dançar. A vida já é muito dura pra ficar se privando de algumas vontades. Por outro lado, Sarah leva uma vida totalmente independente, o que de certa forma a torna extremamente sexualizada aos olhos de outrem.

O drama de Sarah começa quando, numa noite em um bar, é levada aos fundos do estabelecimento e é brutalmente estuprada por outros três homens (cena que só é esplanada nos minutos finais do filme, contribuindo para uma montagem também louvável). Ao mesmo tempo em que Sarah é violentada, os outros homens que estão no bar assistem a cena de forma passiva, hora incentivando os agressores, hora ignorando o episódio. Após ser levada ao hospital, Sarah dispõe da ajuda da advogada Kathryn Murphy (Kelly McGillis, ótima), que inicia um processo judicial contra os agressores.


Basicamente, o esqueleto do trabalho de Jonathan Kaplan é esse. O que acontece depois é toda uma situação de colocação dos princípios desses seres em relação à sociedade que os rodeia. Por exemplo: Nos Estados Unidos, a vítima de estupro não é vista a princípio como uma vítima e, sim, como um suspeito de seu próprio caso. O ambiente, a conduta, o tipo de roupa, o tipo de corte de cabelo, todos esses fatores coexistem como indícios de um ato ser considerado crime ou não. O que Kaplan realmente oferece é esse olhar mais direto sobre as morais difundidas pela sociedade. Nesse caso, um esmiuçar tênue ao modo machista de se pensar, ou melhor, de se aplicar leis. Ou seja, Sarah não se vê confrontada apenas pelos seus medos, seus agressores e seus traumas, mas também, pelo sistema penal, que configura um pesadelo ainda maior em sua dura caminhada.

Se Sarah instigou tal ato ou não isso não deveria ficar a cargo da justiça deflorar, se ela consumiu álcool antes, se ela beijou um dos caras antes, isso não importa. Está caracterizado o estupro: um indivíduo forçando o outro a manter relação sexual. Até que a obra vai perder um pouco do seu maior trunfo: o mergulho profundo na cabeça de Sarah. Essa vertente de explorar o psicológico da vítima é, sem dúvida, a sensação do filme, é o que o espectador consome com fúria. Mas, lá pelos altos, o filme se força a crescer como um drama de tribunal, influenciando muito no ritmo que, até então, tinha conquistado, pra só se recuperar nos instantes finais. O filme, que foi inspirado num fato real, ainda se mantém firme principalmente por contemplar o realismo em suas cenas, todas habitadas numa crueza absurda.


Filmes que problematizam a questão judiciária não precisam necessariamente se tornar um filme de tribunal, ainda mais quando não têm cacife pra isso. Embora o roteiro se garanta, a direção se mantenha firme e o elenco brilhe, fica aquela sensação de “queria ter visto mais um pouco disso e não tanto disso”. Entretanto, o filme vale. Vale cada segundo da interpretação soberba (e premiada com o Oscar de Melhor Atriz) de Jodie Foster.