quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

A Moça por trás do Céu (Crítica: A Estranha Passageira / 1942)



A prova máxima da influência de Bette Davis no Cinema está em A Estranha Passageira (1942), bem no instante em que a atriz entra em cena. O diretor Irving Rapper usa sua câmera para fazer suspense quanto a presença da atriz em seu filme. Primeiro mostras as mãos, depois faz ela descer um lance de escadas mostrando só a silhueta da atriz, quando, passeando pelo novo mundo daquela personagem, foca, finalmente, no rosto estelar e aflito de Davis.

Charlotte Vale é uma das figuras mais marcantes que Bette Davis interpretou, seja pela eficiência do produto final, que resultou num filme impecável para a época, e também certificado na pele da atriz. "A Estranha Passageira" sofre de um mal comum, o tempo. As relações propostas pelo filme, tanto as relações familiares tão conservadoras e ineficientes do começo dos anos 40, como na atitude libertadora de Charlotte, se encaixam muito bem no tempo em que estão, porém, envelhecem. As formas de persuasão entre membros da mesma família já não são as mesmas, por isso, parece ser um filme muito distante da realidade contemporânea, o que também não deve colocar em cheque todo o trabalho dos envolvidos no filme, mas, infelizmente, o sentimento de busca de identidade daquele mundo fica cutucando o espectador durante toda a projeção.

Davis é a filha controlada pelas vontades e pulso firme da mãe, interpretada com força por Gladys Cooper. Mais do que tentar se libertar das rédeas da mãe, Charlotte procura por uma personalidade própria, o que já é um ponto muito positivo para o filme, descentralizando a figura da mãe, que aparece mais como uma coadjuvante de peso, pronta pra tornar a vida da filha um verdadeiro inferno na Terra. O conceito de epifania esclarece bem o que tenta ser a personagem de Bette Davis: o autoconhecimento, a aparição e a manifestação do que "sou" na verdade. Até lá, Charlotte ainda é vítima da tirania da mãe, que a transforma numa mulher à beira de um ataque de nervos. A insegurança reina no semblante da filha.



Fica difícil saber a idade de Charlotte, presa numa narrativa não-linear que foge dos preceitos da época. Hora com 18 anos, alegre, feliz, pronta para amar, hora com 27, amargurada, afundando na tristeza. A via-crúcis de Charlotte se completa com o aparecimento de uma paixão na viagem de navio rumo ao Rio De Janeiro. As proibições desse amor correspondido levam Charlotte a repensar sua vida, que numa volta triunfal, assume a postura da mulher dominante, dona do próprio nariz, mas que, ainda, tem o abismo diante de seus pés: a mãe.

Mais uma vez, sempre com muito merecimento, Bette Davis teve sua atuação indicada ao Oscar, quando, dessa vez, acabou perdendo para Greer Garson, que na época foi premiada por um trabalho em parceria com William Wyler - o fantástico Mr. Wyler. Na dor, na esperança, na prisão ou na dúvida, onde estiver, repito, Bette Davis estará no único lugar em que deveria estar.

domingo, 24 de fevereiro de 2013

Ligações Perigosas (Crítica: A Carta / 1940)



Bette Davis deve agradecer na eternidade a chance que teve de trabalhar os mais diversos tipos de personalidade que algumas mulheres podem desvendar ao longo de sua vida. De mentirosa a mocinha, de louca a assassina, todos quase sempre sob a batuta de um diretor bastante sensível, pronto pra tirar o sangue da atriz, sem que ela abandone a mais bela das coisas da arte de atuar: a naturalidade. Despe-se de sua vaidade - e, por isso, acho Kate Winslet tão parecida com Davis - com uma força muito natural, mistificando a si própria como uma atriz inabalável e inatingível. Simplesmente, alguns nascem destinados a fazer exatamente aquilo, prova disso é o talento e infinitas oportunidades que Davis encontrou em sua caminhada. Onde quer que ela estivesse, aquele era o único lugar que ela deveria estar.

Em A Carta (1940), segunda parceria da atriz com o diretor William Wyler, novamente temos uma atriz entregue ao papel, consumida pelos mistérios e focada no destino de sua personagem. Fazer o espectador acreditar piamente naquilo que está vendo não é tarefa fácil, mas, como já citado, Bette Davis exala ar fresco, restando como única opção viver o drama que ela vive. Pouquíssimos atores tem esse poder de convencimento, de controle absoluto de cena e dos olhares.

Leslie Crosbie, personagem de Davis em "A Carta", é um prato cheio para a destemida atriz, que habitualmente deita e rola com a história dessa mulher com aspectos duais. Leslie é americana e mora na Ásia com o marido (Herbert Marshall) e, num dia qualquer, após momentos de desespero acaba matando um homem que tentou violentá-la. Com o apoio de marido e do advogado, Leslie alega legítima defesa. O que a mulher não contava era com o aparecimento da viúva em posse de uma carta, revelando uma ligação muito maior entre vítima e suspeito.



O desespero anda de mãos dadas com Leslie, que além de temer que seu segredo seja desvendado, também assume uma postura enigmática quanto ao limiar de todos os problemas. Na verdade, se existe, sobretudo, falhas na condução do filme, provavelmente essa se perde na poderosa presença de Davis, que não deixa mais espaço para outra conclusão. Leslie esbanja comprometimento mesmo nas cenas mais descartáveis, em que a tensão de sua postura simplesmente não cai, pelo contrário, é como alimentar dragões.

A personagem no filme rendeu a quarta indicação oficial de Bette Davis ao Oscar, que, naquele ano, nem ela e nem Katharine Hepburn tiveram chances contra Ginger Rogers, premiada pelo papel em “Kitty Foyle” (1940). Embora não seja dos melhores filmes da carreira da atriz, Bette Davis reúne todos os pré-requisitos para estar em qualquer lista de qualquer prêmio.

Meninas Malvadas (Crítica: Jezebel / 1938)



“Jezebel” (1938) é o primeiro filme de uma respeitável parceria entre a atriz Bette Davis e o diretor William Wyller, que, mais tarde, se alongou com "A Carta" em 1940 e "Pérfida", de 1941 - Davis foi indicada ao Oscar de Melhor Atriz nas três vezes, mas só venceu justamente por “Jezebel”, configurando seu segundo e último Oscar da carreira. Depois de mais de setenta anos, “Jezebel” ainda se segura no posto de "clássico" da cinematografia mundial. Exaustivamente comparado a "...E o Vento Levou", de Victor Fleming, que seria lançado no ano seguinte, 1939, o filme de Wyler tenta transparecer algo mais sutil aos olhos do espectador do que é, na verdade, a obra de Fleming, que usa mais de um acontecimento histórico para pontuar um romance imortal. Em “Jezebel”, o drama de amar é a principal arma do roteiro.

Bette Davis empresta sua impetuosidade a Julie Marsden, senhorita habitante do sul dos EUA em 1852, mais precisamente New Orleans - precedente à Guerra de Secessão, a região ainda era escravagista, conservadora em seus machismos e preconceitos. Num primeiro instante, Julie demonstra força de sobra ao espectador, parece querer contestar velhos hábitos enraizados na cultura regional, como, por exemplo, quando chega a festa de seu noivado com roupa de montaria e que, segundo ela, não haveria um traje mais apropriado para o momento. E aqui entramos no dúbio reflexo que Julie consegue expulsar de si. Miss Marsden é o que se diz ser uma belle do sul: Bonita, rica, com posição social invejada por outras mulheres e desejada discretamente por outros homens. O que Julie tem de força, também tem de egocentrismo. Usa de sua posição para fazer charme, ser lembrada e não mais esquecida.

O drama da personagem de Davis começa quando, pra se vingar do noivo, que não esteve com ela na prova final do vestido de um importante baile da cidade, resolve comparecer ao tal baile num escandaloso vestido vermelho, que naquele meio e naquela época era difundido como impróprio, sendo o vestido branco ideal para as moças virgens. Pres (Henry Fonda), o noivo de Julie, logo toma um susto e por não conseguir manter uma postura forte com relação a noiva, acaba permitindo seu devaneio modista. Quando chega ao baile, em brilhante cena filmada pela inconfundível câmera inovadora de Wyler, Julie passa por momentos de dura repreensão, que sob os olhares contrariados dos convidados, é levada, contra a sua vontade, a uma valsa mortífera e solitária, agora ministrada pelo vingativo Pres, que usa da oportunidade para pôr rédeas na petulância da futura mulher. Saldo final: ainda no alto de sua arrogância, Julie volta para casa inspirada com seu feito, como se seu desejo de enfrentar a sociedade tivesse sido finalmente selado, sem que de alguma forma a envergonhada deveria ser ela. Só que a belle não contava com o adeus de um renovado Pres, que, cansado de penar na mão de Julie, encerra o noivado e decide voltar para o norte do país.

Um ano se passa e Julie, ainda corroída com a separação, está trancada dentro de casa, evitando visitas e outros tantos prazeres dentro das suas possibilidades. A chama da esperança da impossível mulher volta a reacender quando um surto de febre amarela começa a se espalhar pelo centro-sul dos EUA, que junto com a doença promete também o retorno de Pres a New Orleans. Sabendo da volta do homem amado, Julie, então, resolve preparar uma festa. Entretanto, a belle não esperava encontrar Pres e sua nova mulher, Amy, agora finalmente casado. O instante em que a personagem de Bette Davis tem a chance de reconquistar seu homem se confunde também com o momento em que a soberba volta a tomar conta de sua personalidade, evidenciando uma mulher toscamente mimada, capaz de tudo para reavivar o amor de Pres, mas ainda muito imatura na cadência desse sentimento que a torna tão cega.

Bette Davis faz miséria na pele da destemida e estranha heroína de Jezebel. Cenas inteiras sustentadas por olhares contundentes e cheios de significado. Nesse ponto, a atriz já demonstra ir contra os preceitos de atuação da época: os discursos apaixonados encarando o horizonte não têm espaço no trabalho de Davis, que prefere encarar, enfrentar os medos e as angústias da personagem, destilando seu veneno seja em quem for, sobrando até para a única pessoa que a suporta, a própria tia, interpretada por Fay Bainter, vencedora na categoria de coadjuvante e que, por outro filme, também concorreu na categoria principal, perdendo justamente para Davis e sua Julie Marsden.

O paralelo feito entre Jezebel, malévola figura bíblica, e Julie flui naturalmente na tela graças ao roteiro libertador - e ao emprenho de Bette Davis. A mudança de caráter da personagem do final rende uma das mais belas cenas da carreira da atriz, que desolada pela negação do amor de Pres, parte para assistir a morte do ex-noivo e, assim, lucrar com novos sentimentos edificantes que possam suplantar a temida Jezebel, aproximando-a de uma mulher como Amy, cheia de bondade, carinho e a atenção.

domingo, 3 de fevereiro de 2013

Uma Atriz (Crítica: Acusados / 1988)

Jodie Foster, acima de tudo. Algumas coisas são assim, se definem pura e simplesmente por um motivo, te caçam e te atingem pura e simplesmente por um único motivo. Acusados (The Accused, EUA, 1988) é Jodie Foster, acima de tudo, talvez como “Monster – Desejo Assassino” (2003) seja Charlize Theron, acima de tudo. Não é o mesmo que dizer que o filme não tenha qualidade, é apenas dizer que a agulha no palheiro foi encontrada ou que a “vaca” realmente tossiu ou, ainda, que um raio com nome e sobrenome te partiu ao meio. Jodie Foster: a agulha, a “vaca” e o raio.


Sarah Tobias (Foster) é uma garota de classe baixa, típica interiorana norte-americana que bebe, fuma, beija quando está com vontade de beijar, dança quando tem vontade de dançar. A vida já é muito dura pra ficar se privando de algumas vontades. Por outro lado, Sarah leva uma vida totalmente independente, o que de certa forma a torna extremamente sexualizada aos olhos de outrem.

O drama de Sarah começa quando, numa noite em um bar, é levada aos fundos do estabelecimento e é brutalmente estuprada por outros três homens (cena que só é esplanada nos minutos finais do filme, contribuindo para uma montagem também louvável). Ao mesmo tempo em que Sarah é violentada, os outros homens que estão no bar assistem a cena de forma passiva, hora incentivando os agressores, hora ignorando o episódio. Após ser levada ao hospital, Sarah dispõe da ajuda da advogada Kathryn Murphy (Kelly McGillis, ótima), que inicia um processo judicial contra os agressores.


Basicamente, o esqueleto do trabalho de Jonathan Kaplan é esse. O que acontece depois é toda uma situação de colocação dos princípios desses seres em relação à sociedade que os rodeia. Por exemplo: Nos Estados Unidos, a vítima de estupro não é vista a princípio como uma vítima e, sim, como um suspeito de seu próprio caso. O ambiente, a conduta, o tipo de roupa, o tipo de corte de cabelo, todos esses fatores coexistem como indícios de um ato ser considerado crime ou não. O que Kaplan realmente oferece é esse olhar mais direto sobre as morais difundidas pela sociedade. Nesse caso, um esmiuçar tênue ao modo machista de se pensar, ou melhor, de se aplicar leis. Ou seja, Sarah não se vê confrontada apenas pelos seus medos, seus agressores e seus traumas, mas também, pelo sistema penal, que configura um pesadelo ainda maior em sua dura caminhada.

Se Sarah instigou tal ato ou não isso não deveria ficar a cargo da justiça deflorar, se ela consumiu álcool antes, se ela beijou um dos caras antes, isso não importa. Está caracterizado o estupro: um indivíduo forçando o outro a manter relação sexual. Até que a obra vai perder um pouco do seu maior trunfo: o mergulho profundo na cabeça de Sarah. Essa vertente de explorar o psicológico da vítima é, sem dúvida, a sensação do filme, é o que o espectador consome com fúria. Mas, lá pelos altos, o filme se força a crescer como um drama de tribunal, influenciando muito no ritmo que, até então, tinha conquistado, pra só se recuperar nos instantes finais. O filme, que foi inspirado num fato real, ainda se mantém firme principalmente por contemplar o realismo em suas cenas, todas habitadas numa crueza absurda.


Filmes que problematizam a questão judiciária não precisam necessariamente se tornar um filme de tribunal, ainda mais quando não têm cacife pra isso. Embora o roteiro se garanta, a direção se mantenha firme e o elenco brilhe, fica aquela sensação de “queria ter visto mais um pouco disso e não tanto disso”. Entretanto, o filme vale. Vale cada segundo da interpretação soberba (e premiada com o Oscar de Melhor Atriz) de Jodie Foster.